10 Perguntas inéditas para Marcela Dantés, autora de Vento Vazio

 Neste post uma nova entrevista do Listas Literárias com personalidades da literatura brasileira, dessa vez com a escritora mineira Marcela Dantés, autora do recente Vento Vazio [nossa resenha aqui] e autora de  Nem sinal de asas (2020, Patuá), obra que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Jabuti. Em nossa entrevista, questões relacionadas ao nova romance e também literatura brasileira, espacialmente a literatura brasileira contemporânea. Confira:L. L.:  1 - Inicialmente gostaríamos de compartilhar que a leitura de Vento Vazio nos impactou bastante. A Quina da Capivara, desconfiamos, é destes espaços ficcionais que chegam para ficar na memória dos leitores, também de nossa cultura. Há nesse espaços um olhar para o insólito, no mínimo; nesse sentido, embora com grandes nomes com narrativas insólitas, a literatura brasileira é fortemente marcada pelo realismo. Pensando tais coisas, como você vê Vento Vazio? Compreendemos com algum acerto que você procura pelo insólito, inclusive com nuances do fantástico?M. D.: Esta é uma forma muito interessante de olhar para o Vento Vazio e para a Quina da Capivara. Eu busquei construir um espaço que fosse Minas Gerais em sua essência e isso é muita coisa: é sim, insólito, muitas vezes improvável, com grande carga de aridez, mas também doçura. É um espaço um pouco louco, porque assim o somos. Confesso que não houve uma busca consciente pelo fantástico, pelo mágico, mas o livro vai sim para esse lugar na medida em que a nossa vida também vai - nem tudo se explica, não é mesmo? E Minas Gerais tá ali, cravada na América do Sul, que é o espaço ideal para o inexplicável. L. L.: 2 - Aliás, pensando na formação traumática da sociedade brasileira enquanto um projeto de nação marcado por desigualdades, apagamentos e silenciamentos, considerando a literatura em suas diferentes possibilidades, narrar tudo isso perpassa pelos gêneros? Na verdade, num país com tantas coisas estranhas que ocorrem somente as tintas realistas dão conta de nossa experiência?M. D.: Em alguma medida sim, nossa história mostra que nessa terra tudo pode acontecer. E que lugar melhor que a literatura para se exercitar isso? L. L.: 3 - Outro destaque que consideramos em seu livro são as vozes narrativas que o compõem. Vozes entre a ingenuidade e pureza da loucura num mundo trágico e violento. Como se deu a construção de tais vozes? M. D.: A construção e desenvolvimento dos quatro narradores foi o maior desafio deste livro. Pois são quatro personagens muito diferentes, com muitas especificidades mas, ao mesmo tempo, que compartilham um universo comum, que têm quase um dialeto particular. Era preciso, então, encontrar um equilíbrio entre o que era comum a todos e onde cada um se diferenciaria. Foi um processo de muita tentativa e erro, muita reescrita e também que foi muito permeado pela oralidade. Enquanto estava escrevendo eu gravava os textos, e voltava depois de algum tempo para escutá-los, pois eles precisavam fazer sentido nesse registro. As histórias de Miguel, Cícera, Alma e Maura passam muito pelo discurso falado, despejado num interlocutor talvez desavisado e eu precisava imprimir esse ritmo e essa dinâmica em cada página. L. L.: 4 - Aliás, tais vozes demonstram a potência da literatura enquanto uso da linguagem. As marcas de oralidade conferem ainda mais força à narrativa. As vozes se embalam entre a prosa e o lírico, os desafios representados pela memória. Como você observa essa questão em sua obra?M. D.: Para mim, a literatura sempre foi sobre isso. É contar uma história, claro que sim, mas não pode ser só. Eu tenho um grande interesse, quase uma devoção pela linguagem, pelas possibilidades infinitas, pelo poder da palavra. Escrever, para mim, é mergulhar nesse universo, testar, refazer, ouvir o texto, lapidar, lapidar, lapidar.  L. L.: 5 - Falando das vozes narrativas do romance, para além de um modo ou outro irem morar na Quina, elas trazem vidas desgraçadas por alguma razão ou outra. Seja Miguel, do qual sabemos alguns, mas nem todos os segredos, seja das vozes femininas, Maura, Cícera e Alma, todas essas vozes retomam pela memória desencontros e tragédias que lhes constituem. Somos fadados a sermos marcados e constituídos pelo trauma, pela violência e pela tragédia de uma existência humana carregada de dores?M. D.: Eu sempre defendi que uma boa história se faz de bons personagens. E penso muito que os bons personagens nascem nas partes mais estranhas e doídas das nossas humanidades. A vida não é fácil, nem sempre é bonita, muitas vezes nos machuca. Tento refletir isso na minha literatura, e talvez Vento Vazio seja o livro em que isso fique mais evidente, mas de uma forma ou de outra, este olhar está sempre ali. A violência, o trauma, as tragédias imensas ou cotidianas são o que nos fazem ser nós mesmos, nesse plano ou nas páginas de um romance. L. L.: 6 - Logicamente, o trauma está relacionado a muitas questões a respeito de tais vozes; seja pela questão étnica, seja pela questão de

Jan 15, 2025 - 18:22
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10 Perguntas inéditas para Marcela Dantés, autora de Vento Vazio

 Neste post uma nova entrevista do Listas Literárias com personalidades da literatura brasileira, dessa vez com a escritora mineira Marcela Dantés, autora do recente Vento Vazio [nossa resenha aqui] e autora de  Nem sinal de asas (2020, Patuá), obra que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Jabuti. Em nossa entrevista, questões relacionadas ao nova romance e também literatura brasileira, espacialmente a literatura brasileira contemporânea. Confira:


L. L.:  1 - Inicialmente gostaríamos de compartilhar que a leitura de Vento Vazio nos impactou bastante. A Quina da Capivara, desconfiamos, é destes espaços ficcionais que chegam para ficar na memória dos leitores, também de nossa cultura. Há nesse espaços um olhar para o insólito, no mínimo; nesse sentido, embora com grandes nomes com narrativas insólitas, a literatura brasileira é fortemente marcada pelo realismo. Pensando tais coisas, como você vê Vento Vazio? Compreendemos com algum acerto que você procura pelo insólito, inclusive com nuances do fantástico?

M. D.: Esta é uma forma muito interessante de olhar para o Vento Vazio e para a Quina da Capivara. Eu busquei construir um espaço que fosse Minas Gerais em sua essência e isso é muita coisa: é sim, insólito, muitas vezes improvável, com grande carga de aridez, mas também doçura. É um espaço um pouco louco, porque assim o somos. Confesso que não houve uma busca consciente pelo fantástico, pelo mágico, mas o livro vai sim para esse lugar na medida em que a nossa vida também vai - nem tudo se explica, não é mesmo? E Minas Gerais tá ali, cravada na América do Sul, que é o espaço ideal para o inexplicável. 

L. L.: 2 - Aliás, pensando na formação traumática da sociedade brasileira enquanto um projeto de nação marcado por desigualdades, apagamentos e silenciamentos, considerando a literatura em suas diferentes possibilidades, narrar tudo isso perpassa pelos gêneros? Na verdade, num país com tantas coisas estranhas que ocorrem somente as tintas realistas dão conta de nossa experiência?

M. D.: Em alguma medida sim, nossa história mostra que nessa terra tudo pode acontecer. E que lugar melhor que a literatura para se exercitar isso? 

L. L.: 3 - Outro destaque que consideramos em seu livro são as vozes narrativas que o compõem. Vozes entre a ingenuidade e pureza da loucura num mundo trágico e violento. Como se deu a construção de tais vozes? 

M. D.: A construção e desenvolvimento dos quatro narradores foi o maior desafio deste livro. Pois são quatro personagens muito diferentes, com muitas especificidades mas, ao mesmo tempo, que compartilham um universo comum, que têm quase um dialeto particular. Era preciso, então, encontrar um equilíbrio entre o que era comum a todos e onde cada um se diferenciaria. 

Foi um processo de muita tentativa e erro, muita reescrita e também que foi muito permeado pela oralidade. Enquanto estava escrevendo eu gravava os textos, e voltava depois de algum tempo para escutá-los, pois eles precisavam fazer sentido nesse registro. As histórias de Miguel, Cícera, Alma e Maura passam muito pelo discurso falado, despejado num interlocutor talvez desavisado e eu precisava imprimir esse ritmo e essa dinâmica em cada página. 

L. L.: 4 - Aliás, tais vozes demonstram a potência da literatura enquanto uso da linguagem. As marcas de oralidade conferem ainda mais força à narrativa. As vozes se embalam entre a prosa e o lírico, os desafios representados pela memória. Como você observa essa questão em sua obra?

M. D.: Para mim, a literatura sempre foi sobre isso. É contar uma história, claro que sim, mas não pode ser só. Eu tenho um grande interesse, quase uma devoção pela linguagem, pelas possibilidades infinitas, pelo poder da palavra. Escrever, para mim, é mergulhar nesse universo, testar, refazer, ouvir o texto, lapidar, lapidar, lapidar.  

L. L.: 5 - Falando das vozes narrativas do romance, para além de um modo ou outro irem morar na Quina, elas trazem vidas desgraçadas por alguma razão ou outra. Seja Miguel, do qual sabemos alguns, mas nem todos os segredos, seja das vozes femininas, Maura, Cícera e Alma, todas essas vozes retomam pela memória desencontros e tragédias que lhes constituem. Somos fadados a sermos marcados e constituídos pelo trauma, pela violência e pela tragédia de uma existência humana carregada de dores?

M. D.: Eu sempre defendi que uma boa história se faz de bons personagens. E penso muito que os bons personagens nascem nas partes mais estranhas e doídas das nossas humanidades. A vida não é fácil, nem sempre é bonita, muitas vezes nos machuca. Tento refletir isso na minha literatura, e talvez Vento Vazio seja o livro em que isso fique mais evidente, mas de uma forma ou de outra, este olhar está sempre ali. A violência, o trauma, as tragédias imensas ou cotidianas são o que nos fazem ser nós mesmos, nesse plano ou nas páginas de um romance. 


L. L.: 6 - Logicamente, o trauma está relacionado a muitas questões a respeito de tais vozes; seja pela questão étnica, seja pela questão de gênero. Você narra a partir dessas vozes geralmente silenciadas. Sua intenção também procura chamar a atenção da hostilidade do mundo para com parte de seus habitantes?

M. D.: sempre escrevi buscando contar uma história, mostrar as personagens no que elas têm de mais singular, mais encantador ou mais assustador. Muitas vezes isso me leva a lugares escuros, traumáticos, difíceis de serem acessados, mas eu sinto que é justamente aí que eu preciso estar. Digo: não faço literatura para levantar bandeiras, para me conectar com o mundo real, para reforçar os desafios de se estar vivo. Eu faço literatura porque eu acredito na arte, na beleza da arte, na potência de um bom texto. 

L. L.: 7 - Num livro que abre espaços ao fantástico e ao insólito, as crenças ou questões metafísicas também parecem-nos presentes. A própria questão, bem, mal, as desconfianças da proximidade com o Diabo, especialmente por meio de Miguel. Poderíamos pensar na Quina enquanto um purgatório, um purgatório que é sempre aqui, na terra dos homens, que encontram maior proximidade com o Diabo que com Deus?

M. D.: É uma visão interessante e bem consistente. Como diria Guimarães Rosa, que também trazia muito o Diabo para sua obra, viver é muito perigoso, né?

L. L.: 8 - Aliás, são muitas questões interessantes acerca do livro, mas gostaríamos de tratar um pouco sobre a questão da literatura de modo geral. Vento Vazio é sua estreia na Companhia das Letras, e seus livros anteriores foram finalistas dos mais prestigiados prêmios literários. Considerando tudo isso, como observa sua participação na literatura brasileira contemporânea, quais são seus projetos? Seus próprios conceitos sobre o que seja literatura?

M. D.: Eu me sinto privilegiada por estar escrevendo e vivendo um momento tão importante da literatura brasileira contemporânea. Aprendo e me inspiro muito com muitos autores e autoras que caminham ao meu lado, que são grandes exemplos e que também posso chamar de amigos. 

Eu olho para a minha trajetória até aqui, quase dez anos depois do lançamento do meu primeiro livro e me sinto muito feliz e muito grata. Passei por editoras incríveis, que foram a Patuá e a Autêntica Contemporânea, estou hoje na maior editora do Brasil, com um editor fantástico, que é o Antônio Xerxenesky, vi meu trabalhando ocupando espaços importantes e, principalmente, alcançando um público cada vez maior, o que é um grande desafio no Brasil. 

Não é fácil todos os dias, não é um mar de rosas, mas, claro, já é bastante coisa. Eu escrevo porque preciso, porque é assim que me organizo, mas cada um desses passos que me faz chegar a mais e mais pessoas, é pra mim uma grande vitória. Porque, afinal, literatura é isso: compartilhar com o outro a sua visão de mundo, suas obsessões, suas angústias. Não fosse isso, manteria meus textos todos salvos numa pasta só para mim. 

L. L.: 9 - Você também participou da tradicional Oficina de Escrita Criativa da PUC-RS, sob orientação do professor Luiz Antonio de Assis Brasil. Como foi a experiência e como tais processos podem, ou não, colaborar no processo formativo de autoras e autores?

Eu acredito muito nas Oficinas de Escrita. Não acho que seja possível ensinar alguém a escrever, porque não existe uma fórmula. Mas se ensina a planejar, se ensina a olhar o ofício de uma forma mais racional, se ensina a buscar nas grandes obras e no próprio texto aquilo que funciona e os motivos para isso. Sem falar nas trocas com outras pessoas que estão na mesma: buscando aprimorar sua escrita, encontrar uma voz, conhecer melhor os processos. Isso é muito enriquecedor e, para mim, fez toda a diferença. 

O Assis é uma das pessoas mais generosas e encantadoras que eu conheço. Ter participado de sua oficina e ter tido seu olhar e suas críticas sempre certeiras para o meu texto, lá atrás, quando eu começava a criar coragem de viver esse mundo, foram fundamentais. Serei sempre muito grata e levantarei a bandeira do espaço rico que podem ser as oficinas - mas que fique o registro que aqui eu não incluo as ditas oficinas repletas de promessas vazias, de fórmulas, de soluções rápidas para um ofício que pede tudo, menos pressa. 

L. L.: 10 - Para finalizar, como tem sido a recepção de Vento Vazio e qual espaço você pensa que ele possa habitar no cenário da literatura brasileira contemporânea. Aliás, como você observa o cenário da literatura brasileira contemporânea, suas potencialidades, mas também os desafios que se apresentam? 

M. D.: Vento Vazio tem sido bem recebido pelos leitores e já me trouxe muitas alegrias. Falo de Clubes de Leitura com trocas fascinantes, leitores que me procuram para compartilhar sua experiência e as maneiras pelas quais o livro os tocou, resenhas e críticas muito bonitas, profundas e interessantes na mídia. 

É sempre uma aventura lançar um livro, na medida em que não tem como prever a recepção do leitor, os espaços que o livro vai ocupar, nada disso. Não foi diferente com Vento Vazio, mas posso dizer que tenho ficado bem feliz com os resultados. 

A literatura contemporânea brasileira vive um momento riquíssimo, de múltiplas e potentes vozes, de obras absolutamente inspiradoras, de autores e principalmente autoras incríveis finalmente recebendo o espaço que merecem. Claro, ainda são muitos os desafios, mas acho que é tempo de celebrar tudo o que já se caminhou. 

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