Vício em celular na infância: o que fazer?

Não é só o excesso de telas que explica a epidemia de transtornos mentais entre os menores. A hora de conter esse fenômeno é agora — e precisa envolver todos

Jan 16, 2025 - 19:08
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Vício em celular na infância: o que fazer?

José (nome fictício) ganhou o primeiro celular da avó aos 10 anos de idade. A mãe, Rachel, ficou desconfortável com o presente, mas foi voto vencido na família. O menino começou a dedicar cada vez mais tempo às telas.

Dois anos depois, Rachel enxerga mudanças significativas em seu comportamento. As notas na escola baixaram, o sono ficou desordenado e o uso das redes sociais passou a acompanhar praticamente todas as tarefas do cotidiano.

Rachel tentou estabelecer limites, mas o filho respondeu com agressividade. Não são raras as noites em que a mãe acorda de madrugada e vê José jogando escondido no quarto. “Pelas atitudes, se ele não estiver viciado, acho que pode estar começando a ficar”, conta.

Ela também tem notado o menino ansioso. Resolveu, então, levá-lo à psicoterapia e também ampliar as atividades esportivas. Cansada e ciente de que esta é uma questão grande demais para ser solucionada apenas pela parentalidade, também aguarda uma conversa na escola, na esperança de receber orientações.

Hiperconexão e transtornos mentais na infância são problema mundial

Os perigos da hiperconexão com celulares
Transtornos mentais cresceu entre crianças e adolescentesImagem gerada por Inteligência Artificial/CLAUDIA

Rachel não está sozinha em sua jornada. A hiperconexão na infância e os transtornos mentais são um desafio global para pais, escolas e governos. O marco mundial das duas questões é o ano de 2010, quando as taxas de depressão e ansiedade começaram a disparar entre crianças e adolescentes ao redor do mundo. A partir daí, os diagnósticos de transtornos mentais foram mais frequentes que nunca. 

Um estudo publicado na revista Jama Psychiatry dá a dimensão do problema: uma em cada 10 crianças e adolescentes do mundo apresenta algum transtorno diagnosticável. Essa epidemia de saúde mental começou a ser observada justamente em um período em que os smartphones evoluíram e as redes sociais se popularizaram também entre os mais jovens.

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O psicólogo social americano Jonathan Haidt, autor do livro que vem causando burburinho entre pais e cuidadores, A Geração Ansiosa, acredita que a infância hiperconectada é a causa da epidemia de transtornos na geração Z — que compreende os nascidos a partir de 1996.

O pesquisador argumenta que a “infância baseada no celular” estaria alterando o desenvolvimento social e neurológico dos jovens e causando problemas como privação de sono, privação social, fragmentação da atenção e vício.

A tese de Haidt, de que a hiperconectividade na infância é a principal causa desta epidemia, no entanto, não é unânime. Candice L. Odgers, por exemplo, é professora de Psicologia na Universidade da Califórnia e tem defendido que não há evidências científicas suficientes para culpar os smartphones pela crise de saúde mental.

Diversos pesquisadores vêm argumentando que correlação não implica causalidade — ou seja, não é porque o acesso aos smartphones cresceu junto com os transtornos mentais na adolescência que o primeiro é a causa do segundo. Há um consenso entre muitos pesquisadores, porém, de que a tecnologia e as redes sociais têm, sim, um efeito negativo — principalmente quando substituem as atividades ao ar livre e a sociabilidade no mundo real.

O controle parental está atrasado

Uso de celulares por crianças
Brasil é um país com crianças hiperconectadas
Hiperconexão na infância tem efeitos negativos para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentesImagem gerada por Inteligência Artificial/CLAUDIA
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O Brasil é um lugar de crianças hiperconectadas. Uma pesquisa realizada pela Dubit Trends com 18 países mostra que somos o terceiro país que mais acessa o YouTube. Nove em cada dez crianças com menos de 12 anos que assistem a vídeos estão na plataforma. O Brasil também é o segundo país pesquisado onde mais crianças de 2 a 15 anos têm o próprio aparelho para consumir conteúdo digital, seja celular, computador ou tablet.

Se o acesso às plataformas já é uma realidade, o foco agora deve estar em orientar as famílias para compreenderem os benefícios e os desafios delas, defende o vice-presidente sênior de tendências globais da Dubit, David Kleeman. “Seria difícil ‘colocar a pasta de dente de volta no tubo’”, afirma ele, que veio ao Brasil recentemente para participar do Festival Comkids, sobre cultura digital e juventude.

Kleeman lembra que outros desafios econômicos e sociais do mundo enfrentados pelas gerações Z e Alpha podem entrar na equação, mas concorda que toda a sociedade precisa de ajuda para gerenciar a tecnologia. “A responsabilidade é de todos, e tem sido muito fácil para todas as partes (empresas donas das plataformas, governo, educação, pais, as próprias crianças, etc) sugerir que a responsabilidade é de outra pessoa”, diz.

Para ele, a indústria da tecnologia pode assumir, por exemplo, o uso ético de ferramentas como algoritmos e inteligência artificial, além de moderação e filtragem de conteúdo e regras em espaços sociais para promover a gentileza e a civilidade.

O mundo avança nas regulamentações sobre o uso de celular por crianças

Hiperconexão na infância
Países têm buscado criar legislações para proteger as crianças do ambiente digitalImagem gerada por Inteligência Artificial/CLAUDIA
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Em diversos países, têm crescido as demandas de governos e especialistas em tecnologia para a proteção virtual dos menores. Em novembro de 2024, por exemplo, a Austrália aprovou uma lei que proíbe o acesso às redes sociais por adolescentes menores de 16 anos. Na Itália, educadores e personalidades do entretenimento pediram recentemente a proibição de smartphones a menores de 14 anos. Os Estados Unidos também vêm discutindo legislações parecidas.

No mês de setembro, o Instagram anunciou a criação do “perfil adolescente”, com medidas restritivas para usuários menores de idade que incluem restrição de menções por outros usuários, desativação de notificações entre 22h e 7h e um convite para que eles saiam do aplicativo após 60 minutos de uso diário. Ainda assim, a sensação geral é de que já saímos atrasados nessa corrida.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou, na última segunda-feira (14), o projeto que proíbe o uso de celulares e outros dispositivos eletrônicos em escolas públicas e privadas do Brasil. Os dispositivos poderão ser utilizados em situações de perigo ou necessidade, para assegurar direitos fundamentais, promover inclusão e atender às condições de saúde dos alunos e em atividades pedagógicas autorizadas pelos professores.

Por que é importante adotar medidas para limitar o uso de telas por crianças?

Transtornos mentais e hiperconexao na infância
As telas podem afetar o desenvolvimento saudável dos menoresImagem gerada por Inteligência Artificial/CLAUDIA

“A atenção, uma habilidade humana fundamental para tudo na vida, inclusive para relacionamentos, está sendo dissolvida, destruída pelas redes sociais”, aponta o pediatra brasileiro Daniel Becker. Com mais de 1,4 milhão de seguidores no Instagram, ele se autointitula na rede social “um ativista pelo bem-estar na infância” e costuma defender que as crianças não devem estar ali. 

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Becker tampouco é favorável ao uso zero de telas, exceto durante os dois primeiros anos de vida, quando há prejuízos ao desenvolvimento infantil. O pediatra reconhece que a tecnologia ocupa uma parcela importante da vida das pessoas e que é difícil afastar as crianças dessa realidade, mas aponta que a questão central é discutir e decidir quando elas devem ter contato com telas, celulares ou redes sociais.

Para ele, o acesso às tecnologias precisa ser supervisionado de perto. Quem decide ofertar tela, por exemplo, precisa limitar o tempo e selecionar os conteúdos adequados. “Tenho conversas com crianças, às vezes, que passam 12 a 15 horas no celular por dia, inclusive de madrugada”, diz Becker.

O tempo é possivelmente superior ao que interage com os pais, por exemplo. Nas palestras escolares que costuma realizar, o pediatra tem ouvido dos próprios adolescentes relatos de abstinência e mal-estar quando o acesso à internet é interrompido. 

A importância de reconectar as crianças com a vida real, longe das telas

No livro A Geração Ansiosa, Haidt defende que é urgente devolver às crianças a interação no mundo real e a possibilidade do brincar não supervisionado, com mais independência. Crianças precisam aprender a socializar, negociar, resolver diferenças e interagir entre si nas suas versões de carne e osso — e não intermediadas por telas.

Além disso, elas precisam ter acesso ao mundo real: ruas, parques, quadras esportivas, natureza, casas de amigos. Na nossa sociedade cada vez mais cerceada, não é raro ver crianças e adolescentes trancados em apartamentos, longe do “mundo real”. A escola tem um importante papel nessa busca.

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Haidt defende que os celulares fiquem fora das escolas — medida, aliás, aprovada pelo estado de São Paulo, que agora proíbe que crianças levem o aparelho às instituições de ensino. “A escola hoje tem novas frentes importantíssimas, como educação para a paz, contra o bullying, a educação antirracista, ambiental, nutricional, sócio-emocional, mas precisa também cuidar da vida digital das crianças”, defende o pediatra Daniel Becker.

De toda forma, o papel da família é fundamental, e os pais precisam estar atentos a essa questão e vigilantes até consigo mesmos. “O celular está tornando as relações entre pai e filho mais precárias, porque eles estão viciados também”, afirma o pediatra. Mas Becker pondera que não basta deixar de dar o celular. É preciso oferecer um mundo bom e interessante fora dos smartphones.

Uma alternativa, aponta, tem sido a construção de pequenas comunidades (seja com colegas da escola, da igreja ou de outros grupos afins) para que as crianças possam sair, brincar, jogar videogame juntas e se fortalecerem sem os smartphones e sem a sensação de que só elas não têm acesso ao celular. “Esse movimento desconecta”, diz.

“É uma manifestação espontânea de pais que está se espalhando rapidamente por milhares de escolas no Brasil.” O caminho, talvez, seja encarar o duro desafio de mostrar que o mundo real, com todas as suas contradições, segue sendo sendo o mais interessante.

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