Artistas há, mas faltava o Ponto Kultural. “Espaço de provocação” abre em Mem Martins

Numa freguesia de 70 mil habitantes, em que o acesso à cultura precisa de transportes e a criação acontece em sótãos, há um novo espaço para artistas. Uma viragem com direcção do colectivo Unidigrazz.

May 23, 2025 - 11:50
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Artistas há, mas faltava o Ponto Kultural. “Espaço de provocação” abre em Mem Martins
Artistas há, mas faltava o Ponto Kultural. “Espaço de provocação” abre em Mem Martins

Era um ponto que faltava à linha. O Ponto Kultural à Linha de Sintra, mais precisamente à freguesia de Algueirão-Mem Martins, uma das mais populosas do país, com quase 70 mil habitantes, e um vazio no que toca a lugares para fazer e aceder a música, cinema, artes plásticas. "Não existem espaços culturais na freguesia de Algueirão-Mem Martins. E, em Sintra, são limitados em termos de programação, também no sentido em que muitas vezes ela está feita com mais de um ano de antecedência. Se uma banda está a começar e quer dar um concerto em algum lado, um ano é muito. A banda pode já nem existir", explica Rodrigo Faria, agente cultural e coordenador do Ponto Kultural, espaço de criação e investigação artística que inaugura esta sexta-feira, dia 23 de Maio, em Mem Martins. As portas abrem às 18.00 e o evento conta com uma exposição de fotografia de Hugo Barros, sobre o
bairro onde cresceu, o Zambujal, e um DJ set com o colectivo RS Produções, da Rinchoa, que se move entre "sons urbanos, periféricos e afro-diaspóricos".

Muita da produção cultural saída daquela que é a última freguesia da Linha antes de chegar a Sintra, e onde se estima que vivam à volta de 15 mil jovens, sobe aos palcos e entra em grandes salas de exposições. Mas sai, muitas vezes, de sótãos, garagens, estações e carruagens de comboio, das praças. Nada de errado com isso. Sai bem. Mas pode fazer-se mais. "Queremos que [o Ponto Kultural] seja um espaço que mostre que, criadas as condições, os artistas acabam por conseguir fazer projectos mais estruturados. E também queremos que o projecto possa contaminar outros a fazer algo semelhante, a dar condições, a criar esta forma de trabalhar com a comunidade, sobretudo com os jovens. Queremos ser um espaço de provocação em relação a outros espaços", continua o produtor. 

Tapada das Mercês, Algueirão-Mem Martins
DR/CMSTapada das Mercês, Algueirão-Mem Martins

Por outro lado, existir uma base, uma plataforma, é uma maneira de dar visibilidade aos artistas da zona e aproximar a comunidade deles, tornando-os mais "reais", ao mesmo tempo que se desmistifica "o que é isso da alta cultura e da baixa cultura". É como conta Rodrigo Faria: "Notamos muito, quando vamos às escolas daqui, que mesmo quem está a estudar artes não conhece os artistas do concelho de Sintra. Só conhecem os comerciais, da área da música, que passam na rádio. Quando não se conhecem exemplos, torna-se difícil acreditar no sonho de ser artista."

Este é o ponto de partida, que faz com que muitos dos seus conterrâneos sintam ou tenham sentido, em algum momento da vida no Algueirão ou em Mem Martins, que a cultura era uma coisa de fora. "Não me lembro de os meus pais me levarem a um espectáculo com eles, de ir ao teatro ou ver uma performance. Há tempos até tive essa conversa, de que me sentia um pouco atrasado, culturalmente, em relação às pessoas com quem lidava."

Concerto em Algueirão-Mem Martins
Hugo BarrosConcerto em Algueirão-Mem Martins

Não é no acesso a espectáculos ou exposições que o colectivo em torno do Ponto Kultural vai mexer, para já, mas sim na criação, porque acredita que essa é "a base". O espaço, que fica nas instalações da Junta de Freguesia, conta com o apoio da Câmara Municipal de Sintra e da Fundação Calouste Gulbenkian. "Vai ser um espaço de trabalho", funcionando à base de open calls e bolsas que darão origem a residências artísticas e workshops, em ciclos trimestrais.

Diogo “Gazella” Carvalho, cineasta, fotógrafo e ilustrador, do colectivo Unidigrazz
Francisco Romão PereiraDiogo “Gazella” Carvalho, cineasta, fotógrafo e ilustrador, do colectivo Unidigrazz
Miguel Pedro, agente cultural
Hugo BarrosMiguel Pedro, agente cultural
Ivânia Pessoa, designer, curadora e directora artística
Hugo BarrosIvânia Pessoa, designer, curadora e directora artística

A cada três meses, prevê-se, haverá, aí assim, apresentações ao público. E, ao longo do tempo, relação com a comunidade, das escolas às associações, passando pelos lugares "onde as pessoas costumam parar". Tudo sob a curadoria independente do colectivo Unidigrazz, do qual fazem parte Tristany, Onun Trigueiros, Diogo "Gazella" Carvalho, Sepher AWK ou Rappepa BeDju Tempu, e em articulação com vários parceiros.

Com quem e para quem?

"Queremos trabalhar com artistas do concelho de Sintra, de Lisboa e a nível nacional. Inicialmente vamos ter esse cuidado de um investimento mais local, mas o que se pretende é uma relação da comunidade com artistas externos e daqui. E não é virem de fora, fazerem o seu projecto e irem embora. Mas também não queremos fechar-nos na nossa bolha, na nossa casa, no nosso território", explica Rodrigo Faria. A ideia é gerar movimento.

"Bandeiras são prédios ke a gente veste aqui", de Tristany Mundu para o CAM
DR"Bandeiras são prédios ke a gente veste aqui", de Tristany Mundu para o CAM

O lugar que agora se torna num centro de investigação e criação artística fica num antigo espaço cultural da Junta de Freguesia de Algueirão-Mem Martins. O primeiro passo deu-se há dois anos, quando o organismo aceitou ceder "uma pequena sala" a um conjunto de artistas e produtores que já vinha com trabalho na bagagem. Pelo que a Unidigrazz tem desenvolvido nos últimos tempos, tanto na comunidade local como fora dela, e pela projecção que alcançou são exemplos a mostra "Interferências", em 2022, no MAAT, ou "Cidade à Volta da Cidade", encomenda do Centro de Arte Moderna (CAM) da Gulbenkian a Tristany Mundu –, quando o colectivo apresentou o projecto do Ponto Kultural, a Junta teve de pensar melhor: uma pequena sala já não seria suficiente. 

Rua Domingos Saraiva 2D, Mem Martins. 23 Mai, 18.00-21.00. Entrada livre