'Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes': na vida inautêntica cantar não espanta os seus males

 O cantor pop americano conhecido como “The Weeknd” há anos tenta se aniquilar: músicas com letras detalhando angústia, desespero, autodestruição e hedonismo como uma forma de punição divina. Ele está sempre tentando se destruir e se refazer em algo novo. Então ele lançou um projeto multimídia, com um álbum e um filme: “Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes” (2025) em que ele interpreta a si mesmo numa narrativa autoindulgente com o velho clichê do artista tendo problemas para lidar com a fama: depois de um colapso emocional que faz perder a voz em pleno show, ele foge. Mas com a fã errada: a persona problemática feita por Jenna Ortega (“Wandinha”) que torna o filme interessante por inseri-lo na questão filosófica discutida de Heidegger a Adorno: a “vida inautêntica” – como a Modernidade e a mercantilização da cultura criam a cisão entre aquilo que acreditamos e o que efetivamente fazemos na vida. E The Weeknd vai aprender da pior maneira possível o custo da vida inautêntica. Nem sempre "quem canta seus males espanta". “Quem canta seus males espanta”, diz aquele provérbio popular. Mas não na Modernidade. Pelo menos não na sua forma de manifestação como mistificação das massas: a Indústria Cultural. Ao mercantilizar a cultura, impôs à sociedade uma “vida inautêntica”. Para além da aparência metafísica heideggeriana que envolve esse conceito (a tecnologia que alienaria o ser humano) ou das leituras desse mesmo conceito que supostamente Theodor Adorno teria feito (como a massificação da cultura destruiria o indivíduo e a cultura espontânea), “vida inautêntica” certamente é o efeito mais deletério da mercantilização da cultura: a cisão ou contradição entre a teoria e a prática, entre a fala e a ação, entre as ideias que apoiamos e aquilo que efetivamente nós fazemos. Por exemplo, posso ser um avido comprador de vinis e CDs de rock grunge ou indie. Ir a shows e confraternizar com slogans críticos ao sistema e contra a hipocrisia da sociedade. Enquanto tenho uma perfeita vida pequeno-burguesa, dessas das famílias em tons pasteis de comerciais de margarina ou produtos matinais. Para mim, sonoridade e letras das músicas tornam-se mera “atitude” ou “estilo”. Não importa se as letras das músicas denunciem a própria hipocrisia da minha vida. Tudo vira apenas uma questão de se entreter com músicas “cabeça”, “críticas”. Hebert Marcuse acreditava que essa vida inautêntica era decorrente de uma característica bem especial de um sistema econômico organizado em torno da primazia do mercado: a “tolerância repressiva”.  O capitalismo tolera que eu professe, defenda ou acredite em qualquer ideia, mesmo contra ele próprio. Mas desde que essa “ideia” seja convertida em mercadoria e seus crentes sejam “consumidores”. Mas essa cisão entre teoria e prática da vida inautêntica cobra um preço: o mal-estar psíquico, a consciência culpada, a sensação de alienação ou inautenticidade. Que, por sua vez (por que não?), pode virar matéria-prima para a Indústria Cultural promover novas mercadorias musicais. Nesse caso, quem canta NÃO MAIS espanta seus males. Os transforma em atitude e estilo cujo valor vai ser especulado no mercado cultural. Esse é o tema do paradoxal filme Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes (Hurry Up Tomorrow, 2025). Paradoxal porque a produção coloca como tema essa alienação da vida inautêntica, enquanto o próprio filme faz parte de um projeto multimídia do cantor pop norte-americano The Weeknd (também conhecido como Abel Tesfaye) que inclui um álbum lançado em janeiro passado e o filme que o acompanha, dirigido por Trey Edward Shults. Mais uma tentativa do cantor transpor para a telona as letras das suas músicas. Mas com um resultado, até aqui, apenas autoindulgente.  The Weeknd vem desejando sua autoaniquilação há anos. Ouça praticamente qualquer faixa ou álbum do astro pop (que já amealhou discos de platina pelas vendagens) e você encontrará letras detalhando angústia, desespero, autodestruição e hedonismo como uma forma de punição divina. Ele está sempre tentando se destruir e se refazer em algo novo. E em Hurry Up Tomorrow (título homônimo do seu último álbum) não é diferente: ele literalmente quer incendiar a persona de The Weeknd – ele acaba conhecendo a fã errada: uma garota que, sim, acredita que as letras das músicas devem corresponder a ações reais de quem as canta. The Weeknd fascina seus fãs porque, para eles, o astro deve ser, acreditar ou vivenciar aquelas experiências ou resoluções que professa nas letras. E a fã não gosta nada quando descobre que o ídolo é tão perdido e vazio quanto a própria vida dela. Histórias de estrelas pop autodestrutivas não são novidade no cinema, desde o clássico melancólico e profundo Nasce uma Estrela. Mas esse filme é paradoxal e irônico: enquanto Abel Tesfaye pensa estar expondo sua alma para os fãs com o projeto multimídia "Hurry Up Tomorrow", o filme inadvertidamente revela as profundezas de sua autoilusão, construindo um projeto de vaidade longo e sem obje

May 30, 2025 - 18:55
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'Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes': na vida inautêntica cantar não espanta os seus males

 


O cantor pop americano conhecido como “The Weeknd” há anos tenta se aniquilar: músicas com letras detalhando angústia, desespero, autodestruição e hedonismo como uma forma de punição divina. Ele está sempre tentando se destruir e se refazer em algo novo. Então ele lançou um projeto multimídia, com um álbum e um filme: “Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes” (2025) em que ele interpreta a si mesmo numa narrativa autoindulgente com o velho clichê do artista tendo problemas para lidar com a fama: depois de um colapso emocional que faz perder a voz em pleno show, ele foge. Mas com a fã errada: a persona problemática feita por Jenna Ortega (“Wandinha”) que torna o filme interessante por inseri-lo na questão filosófica discutida de Heidegger a Adorno: a “vida inautêntica” – como a Modernidade e a mercantilização da cultura criam a cisão entre aquilo que acreditamos e o que efetivamente fazemos na vida. E The Weeknd vai aprender da pior maneira possível o custo da vida inautêntica. Nem sempre "quem canta seus males espanta".

“Quem canta seus males espanta”, diz aquele provérbio popular. Mas não na Modernidade. Pelo menos não na sua forma de manifestação como mistificação das massas: a Indústria Cultural. Ao mercantilizar a cultura, impôs à sociedade uma “vida inautêntica”.

Para além da aparência metafísica heideggeriana que envolve esse conceito (a tecnologia que alienaria o ser humano) ou das leituras desse mesmo conceito que supostamente Theodor Adorno teria feito (como a massificação da cultura destruiria o indivíduo e a cultura espontânea), “vida inautêntica” certamente é o efeito mais deletério da mercantilização da cultura: a cisão ou contradição entre a teoria e a prática, entre a fala e a ação, entre as ideias que apoiamos e aquilo que efetivamente nós fazemos.

Por exemplo, posso ser um avido comprador de vinis e CDs de rock grunge ou indie. Ir a shows e confraternizar com slogans críticos ao sistema e contra a hipocrisia da sociedade. Enquanto tenho uma perfeita vida pequeno-burguesa, dessas das famílias em tons pasteis de comerciais de margarina ou produtos matinais. Para mim, sonoridade e letras das músicas tornam-se mera “atitude” ou “estilo”. Não importa se as letras das músicas denunciem a própria hipocrisia da minha vida. Tudo vira apenas uma questão de se entreter com músicas “cabeça”, “críticas”.

Hebert Marcuse acreditava que essa vida inautêntica era decorrente de uma característica bem especial de um sistema econômico organizado em torno da primazia do mercado: a “tolerância repressiva”.  O capitalismo tolera que eu professe, defenda ou acredite em qualquer ideia, mesmo contra ele próprio. Mas desde que essa “ideia” seja convertida em mercadoria e seus crentes sejam “consumidores”.

Mas essa cisão entre teoria e prática da vida inautêntica cobra um preço: o mal-estar psíquico, a consciência culpada, a sensação de alienação ou inautenticidade. Que, por sua vez (por que não?), pode virar matéria-prima para a Indústria Cultural promover novas mercadorias musicais.




Nesse caso, quem canta NÃO MAIS espanta seus males. Os transforma em atitude e estilo cujo valor vai ser especulado no mercado cultural.

Esse é o tema do paradoxal filme Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes (Hurry Up Tomorrow, 2025). Paradoxal porque a produção coloca como tema essa alienação da vida inautêntica, enquanto o próprio filme faz parte de um projeto multimídia do cantor pop norte-americano The Weeknd (também conhecido como Abel Tesfaye) que inclui um álbum lançado em janeiro passado e o filme que o acompanha, dirigido por Trey Edward Shults. Mais uma tentativa do cantor transpor para a telona as letras das suas músicas. Mas com um resultado, até aqui, apenas autoindulgente.

 The Weeknd vem desejando sua autoaniquilação há anos. Ouça praticamente qualquer faixa ou álbum do astro pop (que já amealhou discos de platina pelas vendagens) e você encontrará letras detalhando angústia, desespero, autodestruição e hedonismo como uma forma de punição divina. Ele está sempre tentando se destruir e se refazer em algo novo.

E em Hurry Up Tomorrow (título homônimo do seu último álbum) não é diferente: ele literalmente quer incendiar a persona de The Weeknd – ele acaba conhecendo a fã errada: uma garota que, sim, acredita que as letras das músicas devem corresponder a ações reais de quem as canta. The Weeknd fascina seus fãs porque, para eles, o astro deve ser, acreditar ou vivenciar aquelas experiências ou resoluções que professa nas letras.

E a fã não gosta nada quando descobre que o ídolo é tão perdido e vazio quanto a própria vida dela.

Histórias de estrelas pop autodestrutivas não são novidade no cinema, desde o clássico melancólico e profundo Nasce uma Estrela. Mas esse filme é paradoxal e irônico: enquanto Abel Tesfaye pensa estar expondo sua alma para os fãs com o projeto multimídia "Hurry Up Tomorrow", o filme inadvertidamente revela as profundezas de sua autoilusão, construindo um projeto de vaidade longo e sem objetivo, destinado a lançar uma nova fase de sua carreira, mas que só satisfará quem já decidiu acreditar que vai gostar do filme por causa de uma suposta afiliação existente com o artista.



O filme é um óbvio veículo para o astro pop. Mas a soberba performance da atriz Jenna Ortega (Wandinha) como a fã que vê no ídolo uma resposta e saída para sua vida familiar despedaçada, dá um sentido verdadeiro a um projeto mercadológico: coloca os holofotes sobre o tema da inautenticidade da música pop.

O Filme

O filme começa com uma narração de correio de voz de uma namorada desconhecida, que manda a última mensagem antes de deixá-lo: "Uma boa pessoa não teria feito isso com alguém que ama."

Essas são as circunstâncias dadas em que Tesfaye está se metendo, enquanto ele continua em uma turnê exaustiva que está testando sua saúde mental, sua paciência e suas cordas vocais (cujas metáforas sobre um artista perdendo e depois recuperando sua voz são as dominantes). Mas ele não consegue se concentrar em nada disso, porque o término catastrófico da relação amorosa está mexendo com sua mente e ele afoga suas mágoas em pílulas, bebida e sexo casual.

Não importa que o roteiro não nos dê nenhuma maneira de vê-la, ou a esse relacionamento, além das explosões possessivas de The Weeknd; ela é uma abstração, como todas as outras mulheres que passam em sua vida.

A única companhia constante que ele realmente tem é Lee (Barry Keoghan), seu empresário e motivador, que é ao mesmo tempo um anjo e um demônio em seu ombro. "Você não é humano!", Lee enfatiza, enquanto tenta convencer Abel a subir no palco para mais um show, mesmo com a voz embargada e em crise.



Aliás, a preparação de The Weeknd nos camarins para o show mais se assemelha ao aquecimento para uma luta em um ringue de UFC – ele até esmurra Lee num equipamento para sparing e se exercita com alteres diante do espelho. Dando uma visão da personalidade egoísta e narcísica do artista pop.

Enquanto isso, uma jovem chamada Anima (Jenna Ortega) despeja gasolina no que se presume ser a casa de fazenda de sua família, no interior, e a incendeia. Pouco sabemos sobre ela, além de descobrirmos ao longo do filme do pai que foi embora e a relação nada boa com a mãe. E também vermos um ingresso para um show de Weeknd em seu celular. 

Abel fica cada vez mais inconsolável com o término amoroso, ao mesmo tempo em que insiste que está com dores na voz que podem exigir uma interrupção em sua turnê internacional. Um médico insiste que a aflição do cantor é puramente psicossomática e que tudo o que ele precisa é de repouso, mas na próxima parada da turnê, ele tem um colapso espetacular ao cantar a primeira música, cancelando o show na hora após perder a voz.

O filme foi inspirado em um evento real em um show do cantor em 2022 – ele realmente teve a voz colapsada, pediu desculpas à plateia e abandonou o palco.

Culpando o empresário Lee por não ter atendido adequadamente às suas necessidades, Abel foge dos camarins e encontra nos bastidores Anima, a fã com quem trocou olhares na multidão durante o colapso.



Os dois saem para se divertir e jogar conversa fora em um calçadão à beira-mar antes de se refugiarem em um hotel para escapar de Lee cada vez mais em busca frenética do artista. Na manhã seguinte, Abel parece ter saído do pânico, mas Anima não está preparada para o fim do tempo que passaram juntos. Uma discussão se inicia e Abel rapidamente percebe que a jovem que lhe deu conforto e segurança em seu momento de fraqueza não está apenas lutando contra um passado conturbado, mas acredita que um futuro imaginário, juntos, é a solução para os problemas que cada um enfrenta.

Ortega se lança energicamente em uma virada de narrativa no terceiro ato em direção à violência que evoca descaradamente projetos de Stephen King como "O Iluminado" e "Misery"; ela é a fã obcecada que lhe explica, sem fôlego, suas próprias músicas, o que elas significam para ela e por que eles deveriam ficar juntos para sempre. 

Tudo o que Anima espera é que Abel seja tudo aquilo que as letras das músicas que ele canta informam. Definitivamente, The Weeknd escolheu a fã errada para afogar as mágoas de um fracasso amoroso. Claro que ela descobrirá a inautenticidade e o vazio do seu ídolo, cujas letras a ampararam em sua pequena vida frustrante e medíocre.

O problema é que Anima tem um péssimo hábito de destruir com fogo aquilo que rejeita...

À primeira vista, e com razão, podemos avaliar que Hurry Up Tomorrow incorre na enésima vez no clichê “os caprichos da fama” ou "estrelas são humanas também, têm problemas como todo mundo", isto é, o lamento de sua estrela sobre como é difícil ser famoso e ter o coração partido, e espera que seu público se curve com cada ferida auto infligida.

Nesse aspecto, o filme é insípido, sinuoso e insistente em sua própria profundidade como a história de um artista tendo problemas para lidar com a fama. Não fosse a presença energética de Ortega. 

Como todos os fãs, buscam no ídolo a autenticidade que a vida lhes nega. Procuram um sentido para preencherem o vazio da própria vida inautêntica. E o personagem de Ortega, Anima, magistralmente expressa isso.

Não foi por menos que, desde o episódio do assassinato de John Lennon em 1980 pelo próprio fã Mark Chapman, as relações entre ídolos e o público mudaram: deixaram de ser mais próximas para receber uma mediação mais distante e profissional.

O negócio dos ídolos pop pode se tornar perigoso. Afinal, um fã pode querer interpretar a letra de uma música na literalidade.


 

 

 

  Ficha Técnica

Título: Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes

Diretor: Trey Edward Shults

Roteiro: Reza Fahim, Trey Edward Shults, The Weeknd

 Elenco: The Weeknd, Jenna Ortega, Barry Keoghan

Produção: Lionsgate, Manic Phase

Distribuição: Paris Filmes

Ano: 2025

País: EUA

 

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