A desdita dos comandos africanos da Guiné na labiríntica historiografia pós-colonial.

   Para me licenciar em História, aprendi que esta é a ciência do Homem no tempo, tempo que tem um antes, um durante e um depois, o investigador compulsa a documentação, pode socorrer-se de depoimentos escritos ou orais, em caso algum pode encobrir provas ou manejá-las de modo que a sua narrativa esteja em plena concordância com as acusações que comportam os recados que aparentam corresponder à clara certidão da verdade. Os fuzilamentos dos comandos guineenses que combateram do lado português continuam a ser matéria fraturante, pasto de trabalhos que no fundo pretendem demonstrar como a nossa descolonização foi caótica, praticou injustiças, deixou um estendal de misérias. Sofia da Palma Rodrigues doutorou-se sobre este tema, ouviu velhos antigos combatentes, responsabiliza as autoridades portuguesas que acompanharam o prescrito pelo Acordo de Argel, e as subsequentes de desleixo criminoso, abandonaram, afinal, à mercê dos rancores do PAIGC homens que tinham sido valorosos a combater pela soberania portuguesa. É uma crítica acintosa, um uso atrabiliário da bibliografia e de diferentes fontes documentais, assim se escreve Por ti, Portugal, eu juro! A história dos comandos africanos da Guiné, por Sofia da Palma Rodrigues, Edições Tinta-da-China, 2024. De acordo com o que se escreveu nos volumes dedicados à Guiné na Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, publicados pelo Estado-Maior do Exército, em 1969, o governador e comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné, António de Spínola, concebeu uma força especial de comandos e fuzileiros, que deu origem a três companhias de comandos e duas de fuzileiros, as primeiras vieram a agrupar-se no chamado Batalhão dos Comandos Africanos. Fez-se uma seleção por recrutamento voluntário de gente que veio dos pelotões de caçadores nativos, das forças das milícias, sobretudo. Está comprovado que as autoridades do PAIGC, o presidente Luís Cabral e os políticos do seu círculo, foram inteiramente responsáveis pelos crimes perpetrados após a independência, perseguindo, prendendo, torturando e fuzilando elementos dessas forças especiais, tanto dos comandos como dos fuzileiros, e mentindo descaradamente, forjando intentonas ou dizendo nada saber sobre estes fuzilamentos. Nos diferentes livros que escreveu, nas entrevistas que deu, Luís Cabral negou sempre conhecimento dessas matanças. Só que os seus colaboradores têm vindo a escrever que as coisas não se passaram assim. Veja-se o que disse Manecas Santos num livro também publicado em 2024 intitulado Uma biografia da luta, Rosa de Porcelana Editora, página 113: “Pouco tempo após a independência, talvez por volta de 1976, Luís Cabral foi passar férias à Suécia. No regresso, fez uma paragem em Lisboa. Tinha boas relações com Ramalho Eanes que o convidou para um jantar. Durante a conversa, Eanes falou-lhe de um conjunto de militares, antigos efetivos do exército colonial, que ainda estavam detidos na Guiné. Fez-lhe um pedido: que fossem devolvidos a Portugal, mediante a sua garantia pessoal de que não se envolveriam em qualquer intriga posterior contra o PAIGC ou o Estado da Guiné-Bissau. Luís concordou. Assim que chegou a Bissau, convocou o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Umaru Djaló; Nino Vieira ministro do Interior; e António Alcântara Buscardini, chefe dos Serviços de Segurança do Estado. Informou-os sobre o acordo feito com Eanes e solicitou que providenciassem os documentos de viagem necessários para o regresso a Portugal dos militares em questão. Foi então que Buscardini, com toda a desfaçatez, informou o presidente que os soldados que tinha prometido devolver já tinham sido executados. Ou seja, Buscardini tinha tomado individualmente uma decisão que punha em causa a palavra do chefe de Estado perante um homólogo; e tinha cometido uma violência contra os prisioneiros que teria sido impensável para o PAIGC, mesmo durante as hostilidades da luta armada.” Esta é a versão de Manecas Santos, acontece que Luís Cabral, por mais uma vez, falou em tribunais e em tentativas de complô feitas pelos comandos, teria sido a justiça a decidir o seu fuzilamento. Como se sabe, não há uma só prova de qualquer envolvimento de comandos e fuzileiros em complôs e sabe-se que os fuzilamentos se prolongaram até finais de 1977. Esta ilustre doutora diz abertamente ao que vem: “Este livro foca-se na recolha de testemunhos que põem em causa as narrativas oficiais que tanto Portugal como a Guiné-Bissau escolheram contar sobre si, e sobre os relatos de pessoas que foram cuspidas para fora de ambos os projetos políticos.” Por outras palavras, os historiadores, na plenitude andam a mentir. Por vezes diz coisas sem qualquer fundamento, como dizer que o PAIGC dominava já mais de metade do território quando Spínola se viu obrigado a apostar nos militares africanos e a dar-lhe funções de maior importância no Exército. É facto que Spínola apostou fortíssimo nestes comandos, eles foram utilizados para as operações mais arrojadas, fizera

May 30, 2025 - 18:45
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A desdita dos comandos africanos da Guiné na labiríntica historiografia pós-colonial.

 

 



Para me licenciar em História, aprendi que esta é a ciência do Homem no tempo, tempo que tem um antes, um durante e um depois, o investigador compulsa a documentação, pode socorrer-se de depoimentos escritos ou orais, em caso algum pode encobrir provas ou manejá-las de modo que a sua narrativa esteja em plena concordância com as acusações que comportam os recados que aparentam corresponder à clara certidão da verdade.

Os fuzilamentos dos comandos guineenses que combateram do lado português continuam a ser matéria fraturante, pasto de trabalhos que no fundo pretendem demonstrar como a nossa descolonização foi caótica, praticou injustiças, deixou um estendal de misérias. Sofia da Palma Rodrigues doutorou-se sobre este tema, ouviu velhos antigos combatentes, responsabiliza as autoridades portuguesas que acompanharam o prescrito pelo Acordo de Argel, e as subsequentes de desleixo criminoso, abandonaram, afinal, à mercê dos rancores do PAIGC homens que tinham sido valorosos a combater pela soberania portuguesa. É uma crítica acintosa, um uso atrabiliário da bibliografia e de diferentes fontes documentais, assim se escreve Por ti, Portugal, eu juro! A história dos comandos africanos da Guiné, por Sofia da Palma Rodrigues, Edições Tinta-da-China, 2024.

De acordo com o que se escreveu nos volumes dedicados à Guiné na Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, publicados pelo Estado-Maior do Exército, em 1969, o governador e comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné, António de Spínola, concebeu uma força especial de comandos e fuzileiros, que deu origem a três companhias de comandos e duas de fuzileiros, as primeiras vieram a agrupar-se no chamado Batalhão dos Comandos Africanos. Fez-se uma seleção por recrutamento voluntário de gente que veio dos pelotões de caçadores nativos, das forças das milícias, sobretudo. Está comprovado que as autoridades do PAIGC, o presidente Luís Cabral e os políticos do seu círculo, foram inteiramente responsáveis pelos crimes perpetrados após a independência, perseguindo, prendendo, torturando e fuzilando elementos dessas forças especiais, tanto dos comandos como dos fuzileiros, e mentindo descaradamente, forjando intentonas ou dizendo nada saber sobre estes fuzilamentos. Nos diferentes livros que escreveu, nas entrevistas que deu, Luís Cabral negou sempre conhecimento dessas matanças. Só que os seus colaboradores têm vindo a escrever que as coisas não se passaram assim. Veja-se o que disse Manecas Santos num livro também publicado em 2024 intitulado Uma biografia da luta, Rosa de Porcelana Editora, página 113:

“Pouco tempo após a independência, talvez por volta de 1976, Luís Cabral foi passar férias à Suécia. No regresso, fez uma paragem em Lisboa. Tinha boas relações com Ramalho Eanes que o convidou para um jantar. Durante a conversa, Eanes falou-lhe de um conjunto de militares, antigos efetivos do exército colonial, que ainda estavam detidos na Guiné. Fez-lhe um pedido: que fossem devolvidos a Portugal, mediante a sua garantia pessoal de que não se envolveriam em qualquer intriga posterior contra o PAIGC ou o Estado da Guiné-Bissau.

Luís concordou. Assim que chegou a Bissau, convocou o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Umaru Djaló; Nino Vieira ministro do Interior; e António Alcântara Buscardini, chefe dos Serviços de Segurança do Estado. Informou-os sobre o acordo feito com Eanes e solicitou que providenciassem os documentos de viagem necessários para o regresso a Portugal dos militares em questão.

Foi então que Buscardini, com toda a desfaçatez, informou o presidente que os soldados que tinha prometido devolver já tinham sido executados. Ou seja, Buscardini tinha tomado individualmente uma decisão que punha em causa a palavra do chefe de Estado perante um homólogo; e tinha cometido uma violência contra os prisioneiros que teria sido impensável para o PAIGC, mesmo durante as hostilidades da luta armada.”

Esta é a versão de Manecas Santos, acontece que Luís Cabral, por mais uma vez, falou em tribunais e em tentativas de complô feitas pelos comandos, teria sido a justiça a decidir o seu fuzilamento. Como se sabe, não há uma só prova de qualquer envolvimento de comandos e fuzileiros em complôs e sabe-se que os fuzilamentos se prolongaram até finais de 1977.

Esta ilustre doutora diz abertamente ao que vem: “Este livro foca-se na recolha de testemunhos que põem em causa as narrativas oficiais que tanto Portugal como a Guiné-Bissau escolheram contar sobre si, e sobre os relatos de pessoas que foram cuspidas para fora de ambos os projetos políticos.” Por outras palavras, os historiadores, na plenitude andam a mentir. Por vezes diz coisas sem qualquer fundamento, como dizer que o PAIGC dominava já mais de metade do território quando Spínola se viu obrigado a apostar nos militares africanos e a dar-lhe funções de maior importância no Exército. É facto que Spínola apostou fortíssimo nestes comandos, eles foram utilizados para as operações mais arrojadas, fizeram muitas vezes vacilar os guerrilheiros do PAIGC e as populações por ele dominadas. Chegaram a ser cruciais em momentos em que se previa a hecatombe, como no cerco a Guidaje, em que os comandos entraram no Senegal e puseram o PAIGC em pânico, em Cumbamori.

Se esta historiografia pós-colonial servisse para pôr esta situação em pratos limpos, ouvir-se-iam aqueles que estiveram a pôr em execução o Acordo de Argel. A senhora doutora nunca refere as conversações travadas pelo brigadeiro graduado Carlos Fabião com os oficiais e sargentos dos comandos e dos fuzileiros, Fabião já faleceu, mas deixou depoimento do que fez e como fez. Nem uma palavra. O PAIGC aceitou incorporar todas as forças militares que combatiam do lado português, não cumpriram. Naquele vendaval de acusações que a doutora faz ao comportamento das autoridades portuguesas, não há nem uma palavra sobre a atmosfera que se viveu em Portugal, particularmente a partir do 11 de março, em que os spinolistas entraram em debandada. Era igualmente compreensível que na análise da situação concreta que se vivia nas conversações entre as autoridades portuguesas e as do PAIGC, estas apelassem à desmobilização das forças especiais, temiam que com a saída dos portugueses se gerassem focos de guerra civil. Valia a pena que a doutora tivesse procurado a documentação desta época nos arquivos da Defesa Nacional e não se limitasse a dizer que Glória Alves, o 2º comandante do Batalhão de Comandos afirmara que os guineenses tinham retirado o seu nome da lista que fora proposta por Fabião para virem para Portugal, fala também em Florindo Morais, mas diz que estes dois responsáveis não eram capazes de garantir como o processo aconteceu e recorre-se de interrogações: “Foram mesmo todos os que tinham o nome na lista a desistir? Houve alguém a precipitar esta decisão? O que terá levado estes militares a deixarem de querer ir para Portugal?” Será isto maneira de fazer historiografia? Andou a fazer entrevistas aos comandos africanos e esta questão não era importante?

Chegámos por fim ao mau da festa, Almeida Santos, que escreveu e promulgou o Decreto-Lei n.º 308-A/75, de 24 de junho, que previa que só conservariam a nacionalidade os cidadãos portugueses nascidos em África que tivessem pais, avós ou bisavós com linhagem europeia goesa. Nem uma palavra para a avalanche de retornados que começavam a afluir, nenhum partido político ao tempo contestou a necessidade desta legislação e, como é sabido, daí por diante, nenhum governo alterou a essência deste princípio da nacionalidade. É facto que se devia ter a seu tempo agido em nome do artigo 25º do anexo do Acordo de Argel, mas, como também é sabido, é assunto face ao qual nenhuma governação quis tratar por via diplomática pelas autoridades da República da Guiné-Bissau, a partir da Resolução do Conselho de Ministros nº18/83 em que se definiu que o pagamento das pensões seria transferido para o Estado da Guiné-Bissau, em troca Portugal perdoaria uma dívida de juros vencida no valor de 200 milhões de escudos. O que será que a senhora doutora queria, que cortássemos relações com a Guiné-Bissau por não cumprir com o estipulado?

Fuzilamento de comandos guineenses matéria fraturante? Sim, enquanto faltar historiografia que busque com rigor o tratamento das fontes e trate com a devida prudência as lacunas e omissões da História oral. Livro que não convence.

 

                                                                                     Mário Beja Santos