Entrevista: Adrian Younge fala sobre seu novo álbum, “Something About April III”, uma história de amor entre pessoas pretas
Em "Something About April III", o espírito brasileiro se apropria com força da aura vintage e analógica e se faz presente nas letras e nas diversas participações!

entrevista de Fabio Machado
À primeira vista, você não diria que alguém nascido em Los Angeles teria uma ligação tão grande com o Brasil a ponto de se dedicar a aprender nossa música e idioma até conhecer Adrian Younge. O português já é parte da rotina do compositor, produtor e multi-instrumentista: durante as conversas, ele faz questão de intercalar a língua brasileira com o inglês para “continuar praticando”.
A imersão brasileira começou pela música (a partir dos discos de vinil garimpados para criação de samples e beats), mas agora se tornou mais profunda e se traduz no último disco de Younge, “Something About April III” – como o nome diz, o último de uma trilogia iniciada em 2011 com uma sonoridade que resgata timbres analógicos da soul music com elementos orquestrais e batidas que se tornaram icônicas na música negra norte-americana.
Essa fusão se tornou uma assinatura pessoal presente em diversos trabalhos, como nas colaborações com Ghostface Killah (Wu-Tang Clan) em “Twelve Reasons to Die” e Ali Shaheed Mohammad (A Tribe Called Quest) na trilha sonora do seriado “Luke Cage”. Ele também criou a gravadora/movimento cultural Jazz is Dead, que já lançou trabalhos de ícones da música instrumental dos EUA e também do Brasil.
Em “Something About April III”, porém, o espírito brasileiro se apropria com força da aura vintage e analógica e se faz presente nas letras (todas compostas em português pelo próprio Younge) e nas diversas participações de artistas como Céu e Luiza Lian.
Ao vivo, o artista norte-americano quis ampliar ainda mais as relações com o Brasil ao trazer os shows do disco com uma orquestra completa e participações de Céu, Lian, Marcos Valle, Hyldon, Samantha Schmutz e Carlos Dafé – todos eles celebrados como parceiros criativos e amigos ao longo da entrevista concedida ao Scream & Yell no belo palco do Teatro Cultura Artística, em São Paulo, que recebeu uma dessas apresentações (saiba como foi o show).
Apesar do tempo apertado para realizar nossa entrevista, Adrian estava animado em falar, tanto em inglês como em português. Na conversa, ele ofereceu mais detalhes sobre sua relação com artistas daqui, seu processo de aprendizado do início até “Something About April III” e da sua visão como “gringo” (em suas próprias palavras) sobre amor, visibilidade e consciência negra no Brasil, um tema que define o disco.
S&Y: No press release, você comentou que este é o álbum que você gostaria de ter feito em 2011. Qual a diferença entre o Adrian de 2011 e o Adrian de agora? O que mudou de lá pra cá?
Adrian (falando em português): Ok, eu vou falar sobre a minha história. Quando eu tinha oito anos, minha mãe e meu pai me compraram um sampler [um dispositivo que permite capturar, reproduzir e editar trechos de músicas, elemento essencial do hip-hop e da música eletrônica] que eu comecei a usar para fazer beats [batidas]. Mas quando eu comecei a criar esses beats, percebi que estava me tornando mais inspirado pelos discos que eu sampleava do que pelos beats que eu criava, entende? (volta para o inglês, enfatizando) Eu fiquei mais inspirado pelos discos que estava sampleando. Então, eu fazia o sample baseado nos discos, mas aqueles álbuns realmente me inspiraram como um todo…
A vibe dos discos, você quer dizer?
Exato. A composição, a sonoridade, a perspectiva desses discos. Então, percebi que eu precisava aprender a tocar instrumentos.
Na época, você ainda não tocava, certo?
(volta para o português) Nada, nada. Eu percebi que precisava aprender, comprei muitos instrumentos e, com o tempo, aprendi a tocar. (retoma a conversa em inglês, quase inconscientemente) Isso foi em 1996. Então, em 2011 minha jornada de aprendizado deu frutos, se tornou real pra mim. Mas eu sempre quis gravar com uma orquestra grande, como as do Arthur Verocai. Mas naquela época eu ainda não sabia ler música, não sabia a diferença entre um acorde maior e um menor; eu só sabia a música da minha cabeça. Então, em 2011, sou eu criando o tipo de álbum que eu gostaria de ter criado, mas eu era bom até certo ponto. (volta para o português) Agora, quando fiz o “Something About April III”, eu escrevi para uma orquestra completa, toquei vários instrumentos e também escrevi as letras em português. Então, eu precisei de muito, muito tempo para me tornar o Adrian Younge de hoje, entende?
Sim. Você disse que agora teve a oportunidade para criar arranjos e conduzir a orquestra completa. Essa foi a primeira vez que você atuou como condutor de uma orquestra? Como foi o processo para esse álbum?
Bom, eu… (volta para o inglês) eu já conduzi e escrevi várias vezes para orquestras no meu estúdio para meus discos. Porque eu já gravei muitas músicas para filmes e televisão. Então já gravei muitas orquestras. (retoma o português) Mas ao vivo, no palco, não tive muito tempo para isso. A primeira vez foi há duas semanas em Los Angeles, e agora aqui no Brasil, tendo essa experiência ao vivo com a orquestra
(Agora eu arrisco um comentário em português) Preciso dizer que seu português está muito bom, e é muito legal ver essa sua relação com o Brasil! Vejo que você conhece e convive com muitos artistas brasileiros, que participam dos seus discos e shows: Samantha Schmutz, Céu, Luiza Lian, Marcos Valle, Hyldon, Carlos Dafé, entre outros. São artistas de diferentes gerações, mas o que você vê em comum entre esses artistas? Você escolheu eles por alguma razão específica?
(começa falando em português) Eu sempre falo: a nova música para mim é música velha, mas que eu nunca ouvi antes (enfatiza a mesma frase em inglês). Porque eu sou muito analógico, não tem computadores nem nada digital no meu estúdio. Totalmente analógico, cara. E isso é porque eu amo o velho som. Todas as pessoas neste palco (aponta para o palco do Teatro Cultura Artística) têm um mesmo sentimento. Marcos Valle, Carlos Dafé, Hyldon, Céu, Samantha… Eu tenho os discos completos de cada um dessas pessoas que vão se apresentar comigo. (volta para o inglês) Eu tenho relações individuais com essas pessoas, e também discos. O Carlos Dafé (em português) tenho um disco completo que vou lançar [pela gravadora Jazz is Dead], talvez em outubro, não sei… E eu também acabei de lançar um disco do Hyldon. (volta para o inglês)
O que eu acho que eles têm em comum, para ser honesto, é que nós nos respeitamos uns aos outros como pessoas criativas. A Luiza Lian foi apresentada a mim pela Céu, e eu pedi para ela participar do “Something About April III”, meu primeiro disco todo em português. Então, o que eu digo sobre arte é que, para mim, meu objetivo número um é gostar deles como pessoas. A arte é sobre pessoas se unindo para compartilhar algo diferente. E essas pessoas pensam da mesma forma, e é por isso que as amo. E por isso que elas estarão no palco. E sobre Samantha, uma coisa interessante sobre ela é que ninguém… ninguém… como é a palavra, “acreditar”? Ninguém acreditava no potencial (dela) como cantora porque “ela é só uma atriz”, “ela é só uma comediante”, certo? Mas com o álbum que nós criamos [nota do redator: o disco “Samantha e Adrian” com previsão de lançamento para julho de 2025], finalmente irão ouvir o quanto ela é talentosa. Mas é porque nós nos amamos tanto, e é por isso que eu amo essas pessoas.
É ótimo que você esteja falando sobre amor, pois acredito que seja um tema central do disco, simbolizado pelo relacionamento entre um casal negro. Você também criou as letras em português, a ponto de se comprometer a aprender o idioma para esse projeto. Eu gostaria que você falasse mais sobre isso: Por quê é tão importante falar sobre o amor entre pessoas pretas e como foi o processo de escrever sobre isso na nossa língua?
(começa falando em português) Muito boa pergunta. Quando eu estudei a relação entre pessoas negras no Brasil e nos Estados Unidos, nossos caminhos estão juntos e ao mesmo tempo diferentes. Mas estamos sentindo as mesmas coisas, como injustiça. Só que (volta para o inglês) em lados diferentes do oceano.
O interessante é que quando você estuda a consciência negra, a negritude, a evolução disso aqui e nos EUA… Lá nós chamamos de movimento pós-direitos civis (post civil rights movement). Nos anos 1970, quando Tim Maia, Tony Tornado estiveram por lá e voltaram, eles trouxeram muito do sentimento de luta que tínhamos lá. E isso ajudou as pessoas pretas aqui a perceberem a sua existência e seu poder aqui no Brasil. Para que todos nós possamos nos unir. Durante o movimento Black Rio por aqui, onde as pessoas estavam fazendo um certo tipo de música, nós estávamos fazendo o mesmo por lá. Stevie Wonder estava vindo para cá para conviver com Milton (Nascimento) ou (Gilberto) Gil, e indo até Quincy Jones… era algo novo, uma coisa nova. No jazz também, até um pouco antes disso.
Eu disse tudo isso para afirmar o seguinte: eu quis criar um álbum preto, como um “gringo” que vem para um lugar onde sinto que pessoas pretas estão sub-representadas, não tão bem representadas fora do Brasil. Eu quis chegar e lançar luz com esse disco. Eu trouxe minhas câmeras, tudo analógico, porque quis tirar fotos aqui no Brasil, eu tinha uma sala escura com produtos químicos e tudo mais, para que as pessoas pretas aqui entendessem que eu as vejo. Porque eu sei que elas me vêem, e eu precisava contar a elas essa história de amor.
– Fabio Machado é músico e jornalista (não necessariamente nessa ordem). Baixista na Falsos Conejos, Mevoi, Thrills & the Chase e outros projetos. A foto que abre o texto é de Jazmin Hicks / Linear Labs