A era da IA e o paradoxo do livre-arbítrio no design de produtos
Como as interfaces de IA colocam o usuário diante do paradoxo entre liberdade e condução.Usuário e a liberdade — Feito com ChatGPTRecentemente vi uma entrevista com o filósofo e professor Clóvis de Barros Filho, onde foi questionado após mostrar sua biblioteca pessoal sobre o motivo do sucesso de vendas dos livros de autoajuda no Brasil e no mundo.Ele argumentou que a liberdade, embora desejada por todos, também é um fardo. Ter que decidir o rumo da própria vida, sem garantias, nos angustia.É nesse incômodo que os livros de autoajuda ganham espaço: prometem respostas prontas para aliviar o desconforto de sermos responsáveis por nossas escolhas.Sei que essa discussão está longe de ser nova. Alguns pensadores de diferentes épocas já refletiram sobre a ambiguidade da autonomia humana. Hoje, o tema ganha novas camadas com os debates que contestam até a própria existência do livre-arbítrio. Por exemplo, um dos cientistas que eu mais acompanho atualmente, Robert Sapolsky, questiona até que ponto somos realmente livres ou se, no fundo, não estamos apenas respondendo a condicionamentos biológicos e ambientais.Apesar de eu achar esse um tema fascinante, não pretendo entrar no mérito dessa discussão (que, sinceramente, acredito que nunca terá fim). O que me interessa aqui é como, ao assistir à entrevista do Clóvis, associei imediatamente suas palavras ao momento atual do design de produtos.As IAs e as escolhasNo universo de UX, aprendemos desde cedo que o papel do designer é resolver dores dos usuários e criar interfaces e produtos“user-friendly”, que entreguem valor e tornem suas ações mais simples e rápidas.Nesse processo, cada escolha de design direciona o comportamento do usuário limitando seu livre-arbítrio, não como forma de controle, mas como um meio de guiá-lo com mais precisão para o que realmente precisa ser feito.Mas as plataformas de IA chegaram para mudar esse cenário oferecendo ao usuário mais liberdade de escolha e interação.Nesse sentido:Será que uma experiência onde há menos limitações sobre o que se pode pedir ou fazer, também pode gerar angústia semelhante ao que o livre-arbítrio costuma causar?O design e a limitação da escolhaPossivelmente ao tentar atravessar uma via movimentada você já se deparou com aqueles botões de trânsito que prometem transformar a luz verde em vermelha para os pedestres.Eu, particularmente, sempre aperto quando vejo um. Mas aqui vai uma curiosidade: em Nova Iorque, a grande maioria desses botões não funciona mais e, ainda assim, continuam por lá.Por quê? Porque ajudam a reduzir a ansiedade de quem espera, oferecendo a sensação de controle sobre algo que, na prática, já está automatizado.Essa ideia de criar contextos onde as pessoas se sentem no controle — mesmo quando os caminhos são parcialmente guiados — também aparece no design de produtos digitais.Se você é designer, é bem provável que um dos primeiros livros que tenha lido sobre UX seja Não me faça pensar, de Steve Krug. O próprio título já resume uma das premissas centrais do nosso trabalho: reduzir o esforço cognitivo do usuário. Criamos experiências que antecipam intenções e suavizam decisões sem tirar a autonomia, apenas diminuindo o atrito e facilitando o caminho.A criação dessa “arquitetura de escolhas”, como define Richard Thaler no excelente livro Nudge não é, no contexto do design, uma forma de opressão, mas sim um direcionamento. É um meio de conduzir o usuário aos resultados que ele próprio espera num produto, evitando frustrações e caminhos confusos.Esse princípio se apoia em fundamentos da psicologia cognitiva, como a Lei de Hick, que afirma que quanto maior o número de opções disponíveis, mais tempo o usuário leva para tomar uma decisão.Em outras palavras, a abundância de escolhas pode dificultar a ação, o que reforça a importância de limitar possibilidades para aumentar a clareza, a confiança e a sensação de controle e, consequentemente, diminuir a angústia.Lei de HicksA era das interfaces de campo aberto e o “novo arquiteto de escolhas”Tenho sentido (e provavelmente vocês também) que estamos vivendo uma virada de chave no jeito como interagimos com produtos digitais.Com a chegada de ferramentas como ChatGPT, Midjourney e Gemini, o design deixou de seguir apenas fluxos fixos e guiados. No lugar disso, entramos no que alguns chamam de “design de possibilidades”, em que o usuário precisa usar palavras, e não cliques, para traduzir suas intenções e dar forma ao que deseja.Essa autonomia, no entanto, vem acompanhada de uma mudança importante:Se antes designers eram os principais arquitetos das escolhas (limitador da liberdade), agora esse papel começa a ser compartilhado, ou até substituído, pela própria natureza da interação com a IA.Esses sistemas passaram a interpretar, responder e sugerir caminhos com base nas ações do usuário. A IA agora se torna um arquiteto dinâmico, capaz de ajustar rotas em tempo real e conduzir o usuário não apenas pelo que ele expressa, mas também pelo que o sistema interpreta

Como as interfaces de IA colocam o usuário diante do paradoxo entre liberdade e condução.

Recentemente vi uma entrevista com o filósofo e professor Clóvis de Barros Filho, onde foi questionado após mostrar sua biblioteca pessoal sobre o motivo do sucesso de vendas dos livros de autoajuda no Brasil e no mundo.
Ele argumentou que a liberdade, embora desejada por todos, também é um fardo. Ter que decidir o rumo da própria vida, sem garantias, nos angustia.
É nesse incômodo que os livros de autoajuda ganham espaço: prometem respostas prontas para aliviar o desconforto de sermos responsáveis por nossas escolhas.
Sei que essa discussão está longe de ser nova. Alguns pensadores de diferentes épocas já refletiram sobre a ambiguidade da autonomia humana. Hoje, o tema ganha novas camadas com os debates que contestam até a própria existência do livre-arbítrio. Por exemplo, um dos cientistas que eu mais acompanho atualmente, Robert Sapolsky, questiona até que ponto somos realmente livres ou se, no fundo, não estamos apenas respondendo a condicionamentos biológicos e ambientais.
Apesar de eu achar esse um tema fascinante, não pretendo entrar no mérito dessa discussão (que, sinceramente, acredito que nunca terá fim). O que me interessa aqui é como, ao assistir à entrevista do Clóvis, associei imediatamente suas palavras ao momento atual do design de produtos.
As IAs e as escolhas
No universo de UX, aprendemos desde cedo que o papel do designer é resolver dores dos usuários e criar interfaces e produtos“user-friendly”, que entreguem valor e tornem suas ações mais simples e rápidas.
Nesse processo, cada escolha de design direciona o comportamento do usuário limitando seu livre-arbítrio, não como forma de controle, mas como um meio de guiá-lo com mais precisão para o que realmente precisa ser feito.
Mas as plataformas de IA chegaram para mudar esse cenário oferecendo ao usuário mais liberdade de escolha e interação.
Nesse sentido:
Será que uma experiência onde há menos limitações sobre o que se pode pedir ou fazer, também pode gerar angústia semelhante ao que o livre-arbítrio costuma causar?
O design e a limitação da escolha
Possivelmente ao tentar atravessar uma via movimentada você já se deparou com aqueles botões de trânsito que prometem transformar a luz verde em vermelha para os pedestres.
Eu, particularmente, sempre aperto quando vejo um. Mas aqui vai uma curiosidade: em Nova Iorque, a grande maioria desses botões não funciona mais e, ainda assim, continuam por lá.
Por quê? Porque ajudam a reduzir a ansiedade de quem espera, oferecendo a sensação de controle sobre algo que, na prática, já está automatizado.
Essa ideia de criar contextos onde as pessoas se sentem no controle — mesmo quando os caminhos são parcialmente guiados — também aparece no design de produtos digitais.
Se você é designer, é bem provável que um dos primeiros livros que tenha lido sobre UX seja Não me faça pensar, de Steve Krug. O próprio título já resume uma das premissas centrais do nosso trabalho: reduzir o esforço cognitivo do usuário. Criamos experiências que antecipam intenções e suavizam decisões sem tirar a autonomia, apenas diminuindo o atrito e facilitando o caminho.
A criação dessa “arquitetura de escolhas”, como define Richard Thaler no excelente livro Nudge não é, no contexto do design, uma forma de opressão, mas sim um direcionamento. É um meio de conduzir o usuário aos resultados que ele próprio espera num produto, evitando frustrações e caminhos confusos.
Esse princípio se apoia em fundamentos da psicologia cognitiva, como a Lei de Hick, que afirma que quanto maior o número de opções disponíveis, mais tempo o usuário leva para tomar uma decisão.
Em outras palavras, a abundância de escolhas pode dificultar a ação, o que reforça a importância de limitar possibilidades para aumentar a clareza, a confiança e a sensação de controle e, consequentemente, diminuir a angústia.
A era das interfaces de campo aberto e o “novo arquiteto de escolhas”
Tenho sentido (e provavelmente vocês também) que estamos vivendo uma virada de chave no jeito como interagimos com produtos digitais.
Com a chegada de ferramentas como ChatGPT, Midjourney e Gemini, o design deixou de seguir apenas fluxos fixos e guiados. No lugar disso, entramos no que alguns chamam de “design de possibilidades”, em que o usuário precisa usar palavras, e não cliques, para traduzir suas intenções e dar forma ao que deseja.
Essa autonomia, no entanto, vem acompanhada de uma mudança importante:
Se antes designers eram os principais arquitetos das escolhas (limitador da liberdade), agora esse papel começa a ser compartilhado, ou até substituído, pela própria natureza da interação com a IA.
Esses sistemas passaram a interpretar, responder e sugerir caminhos com base nas ações do usuário. A IA agora se torna um arquiteto dinâmico, capaz de ajustar rotas em tempo real e conduzir o usuário não apenas pelo que ele expressa, mas também pelo que o sistema interpreta como relevante.
É nesse contexto que a fala de Jakob Nielsen ganha ainda mais ressonância. Em um de seus artigos, ele afirma que:
“Uma grande desvantagem desse tipo de usabilidade é que os usuários precisam ser muito articulados para escrever o texto necessário nos prompts.”
Além disso, eu acrescentaria que não bastam serem articulados. É preciso também que tenham clareza sobre o que realmente desejam como resultado.
Como já mencionei em outro texto, muitas interações com LLMs partem de comandos vagos, o que sugere que boa parte dos usuários ainda não tem plena consciência do que busca.
No ano passado, enquanto eu pesquisava formas de melhorar a experiência de uso na empresa de IA em que trabalho, encontrei um estudo que analisava como usuários interagiam com plataformas como o Midjourney.
Um dos achados mais relevantes reforçava algo que já vínhamos observando internamente:
Muitos usuários enfrentavam dificuldade para elaborar prompts eficazes e, diante de resultados frustrantes, acabavam atribuindo a culpa a si mesmos.
Isso acontecia mesmo quando o problema estava nas limitações do próprio sistema.
Essa frustração revela uma contradição importante. Apesar da promessa de maior autonomia, interfaces abertas também podem gerar insegurança e ansiedade justamente por colocarem toda a responsabilidade da escolha nas mãos do usuário.
O design como tradutor de intenção
Talvez o maior desafio — ou a maior oportunidade — do design na era da IA não seja criar fluxos perfeitos ou respostas instantâneas, mas sim atuar como um tradutor entre o desejo abstrato do usuário e as possibilidades oferecidas pela tecnologia.
Sendo assim, não basta mais guiar o usuário por um caminho pré-determinado. É preciso ajudá-lo a descobrir qual caminho deseja seguir e, principalmente, como expressar em formas de palavras.
Aqui, traduzir intenção não significa simplificar tudo até o ponto da automatização cega.
Traduzir intenção significa criar pontes entre o que o usuário sente, pensa ou imagina, e o que a tecnologia pode, de fato, entregar.
Alguns produtos já buscam soluções para esse desafio de formas diferentes. O Midjourney, por exemplo, entrega quatro imagens distintas por prompt, ampliando a possibilidade de escolha. Essa estratégia parece se basear em dois fatores: a dificuldade comum dos usuários em descrever exatamente o que desejam e a natureza imprevisível dos resultados gerados por sistemas de IA.
Já o ChatGPT permite ajustar o prompt após uma resposta ou configurar parâmetros como o estilo de escrita, oferecendo mais controle sobre o que será produzido.
No fundo, o que essas soluções tentam resolver não é apenas uma questão técnica. Elas tocam exatamente no ponto levantado por Clóvis: são tentativas de aliviar a angústia de quem, diante de possibilidades infinitas, ainda não sabe ao certo o que deseja, e carrega o peso de ter que escolher mesmo assim.
Nesse cenário, talvez o papel do design não seja mais limitar caminhos, mas oferecer apoio diante do excesso. Criar experiências que acolham a incerteza e aliviem a pressão de sempre saber o que se quer.
Em vez de entregar respostas prontas, cabe a nós desenharmos sistemas que ajudem usuários a formularem suas próprias perguntas.
Pois na era da IA, o verdadeiro diferencial não está em dar poder, mas em tornar esse poder menos solitário.
Referências
- Clóvis de Barros: ‘Há uma angústia em ser livre. Por isso os livros de autoajuda fazem sucesso’, Estadão
- How to design AI interfaces to improve user choices, Edward Chechique
- Is It AI or Is It Me? Understanding Users’ Prompt Journey with Text-to-Image Generative AI Tools, Atefeh Mahdavi Goloujeh, Anne Sullivan, Brian Magerko
- The Articulation Barrier: Prompt-Driven AI UX Hurts Usability, Jakob Nielsen
Livros
- Determinados: A ciência da vida sem livre-arbítrio, Robert M. Sapolsky
- Não me faça pensar, Steve Krug
- Nudge, Richard Thaler, Cass Sunstein
A era da IA e o paradoxo do livre-arbítrio no design de produtos was originally published in UX Collective