C6 Fest 2025: Noites de jazz exibiram bons shows, mas careceram de ousadia e música brasileira
Em uma escalação em que quase todos os nomes prestaram homenagem à música brasileira, chama a atenção o fato de haver apenas um artista local entre cinco gringos...

texto de Bruno Capelas
fotos de Fernando Yokota
Desde sua criação, em 2023, há vários fatores que fazem do C6 Fest um festival singular no Brasil de hoje em dia. Um dos mais interessantes é o fato de que o evento busca não só oferecer ao público uma curadoria pop de qualidade, mas também propostas sonoras avançadas, muitas vezes se aproximando desse monstro chamado… jazz. Nos dois primeiros anos, esse recorte forneceu à programação alguns de seus melhores shows – caso de Nubya Garcia e The Comet is Coming, em 2023, ou de Dinner Party e Chief Adjuah no ano passado. No entanto, para boa parte do público do festival, os nomes que se apresentaram do lado interno do Auditório Ibirapuera nas duas primeiras edições passaram despercebidos, por uma série de motivos – do conflito de horários ao ingresso cobrado à parte, passando pela cobertura menos atenta de parte significativa da imprensa.
Assim, quando o C6 Fest – vale lembrar, um sucessor espiritual do Tim Festival e do Free Jazz – anunciou que deixaria os dois primeiros dias do festival deste ano apenas para o jazz, muita gente comemorou. Afinal, era a chance de poder se dedicar de corpo e alma aos espetáculos dentro do projeto de Oscar Niemeyer, sem pensar no mundo lá fora (literal ou figurativamente). Por outro lado, ficava a dúvida: como o evento se sairia depois do falecimento de seu principal curador da área, Zé Nogueira, em abril do ano passado? Com a escalação divulgada, os prognósticos eram bons. Mas, antes que o público pudesse subir a rampa vermelha desenhada pelo velho comunista, veio um último golpe: um infarto do maestro Mulatu Astatke fez com que o etíope tivesse de ser substituído pelo veterano saxofonista Joe Lovano.
Companheiro de carreira de gente como Bill Frisell e Esperanza Spalding, coube a Lovano a missão de abrir os trabalhos do festival na quinta-feira, 22 de maio, com seu quinteto, em um espetáculo que buscava honrar o disco “Tenor Legacy”, de 2005. Em uma hora e vinte de show, o grupo executou apenas quatro números, na melhor acepção do termo “menos é mais”. Se o espetáculo começou cartilhesco, ao longo da apresentação ele foi alçando voos mais altos, especialmente graças à performance potente do baterista kosovar Lamy Istrefi – cuja compleição física exígua não parecia combinar com a ferocidade de seus golpes.
Após um breve intervalo e uma lufada de ar frio na área externa do auditório no recém-criado Village, veio o show mais aguardado dos dois dias. Criado a pedido do festival, o Amaro Freitas Septeto fez sua estreia buscando adaptar o celebrado “Y’Y” (disco do ano tanto neste Scream & Yell quanto na APCA) para uma formação estendida. O resultado foi misto: com apenas dois ensaios antes do show, o grupo começou os trabalhos com o pé esquerdo, em uma performance às vezes desencontrada de “Ayeye”. Na sequência, vieram belas releituras de “Baquaqua” e “Afrocatu” – esta última, com direito a dois bonitos duelos, um de pífanos e o outro de ritmos, em uma interação carismática entre o percussionista Beto Xamba e o baterista Rodrigo ‘Digão’ Braz.
Mais profunda, a segunda parte do show foi toda dedicada à “Suíte Amazônica”, uma homenagem “às águas do Norte, aos povos da floresta e a Naná Vasconcelos”, como definiu Freitas. A proposta era mais que interessante, mas a execução foi aquém do esperado: em alguns momentos, a formação priorizou os sopros e deixou o celebrado piano do bandleader em segundo ou terceiro plano. Mais que isso, ao colocar os metais à frente, o septeto se aproximou mais da sonoridade do jazz contemporâneo que da música brasileira, no que soou mais como um retrocesso do que um passo adiante para Amaro. Além disso, vale destacar o equivocado uso de loops – ferramenta que o pianista usa e abusa em apresentações solo com destreza, mas que perde seu sentido quando há tantos companheiros no palco. Ao final, ficou claro o potencial do septeto, mas também que há um caminho ainda a ser percorrido para que ele esteja à altura dos voos consagrados que Amaro tem feito nos últimos anos.
Para fechar a quinta-feira, a paquistanesa Arooj Aftab trouxe à tona uma formação pouco usual: bateria de jazz, baixo acústico, flauta transversal e harpa. O quarteto era responsável por acompanhar a cantora, radicada nos Estados Unidos, em uma mistura pouco convencional de jazz, folk e entonações orientais, misturando o inglês ao urdu de sua terra. Veterana em passagens de férias pelo Brasil e parceira de gente como Badi Assad, Aftab tinha uma intenção principal ao longo da noite: mostrar que sua música não serve (só) para meditação. Deu mais certo no humor do que na prática: se ao prometer tocar uma canção “divertida” Aftab só exibiu uma faixa “menos triste”, ao conversar com o público o papo foi ótimo – ela elogiou o Brasil, falou mal da Europa, distribuiu uísque para a plateia com auxílio de garçons e falou da vida sentimental. A sensação era dissonante, porém, e no final do embate a torcida que fica é que ela saiba transferir o timing cômico para suas canções no futuro.
Se na temperatura a sexta-feira teve termômetros abaixo da véspera, no palco o saldo do segundo dia do C6 Fest também foi mais morno que o da noite anterior. Rapper, produtor e baterista, Kassa Overall passou as primeiras duas décadas de sua carreira colaborando com gente como Yoko Ono, Jon Batiste e Ravi Coltrane. Sua carreira como bandleader, porém, é bem mais recente, contando com três álbuns desde 2019. A “juventude” ficou evidente no palco: ao acrescentar doses cavalares de rap e R&B ao fusion, Overall reúne os elementos certos para criar algo interessante, mas a soma dos fatores parece dispersa, necessitando de uma linha mestra, tal como um time de juniores buscando um técnico. Tal falta de direção ficou evidente, por exemplo, quando o grupo buscou adaptar um de seus números ao “ritmo brasileiro” para fazer média com a plateia e acabou atravessando o samba.
Também baterista, Brian Blade deu sequência à noite de posse de um currículo invejável: ele marcou o ritmo em canções como “Come Away With Me”, de Norah Jones, ou “Not Dark Yet”, de Bob Dylan, além de ter tocado com gente como Chick Corea, Herbie Hancock ou Wayne Shorter (só para citar três). Acompanhado pela banda The Fellowship, que ele formou em 1998, Blade não só fez um show classudo, como ainda mostrou todo o potencial de seu instrumento, trafegando da sutileza à pura força. Ao contrário de seu colega, o baterista (que já gravou um disco em homenagem a Hermeto Pascoal) mostrou profundo respeito pela música brasileira para prestar uma homenagem a um de seus “heróis”: Milton Nascimento. Com apoio de Paulo Prando (pandeiro), Lucas Alakofá (alfaia) e Pedro Santos (berimbau), trio de músicos que Blade conheceu em palestra na Escola de Música do Parque do Ibirapuera no dia anterior, a formação encerrou o show com uma releitura emocionante de “Os Escravos de Jó” – tema também conhecido pelos nomes de “Caxangá” ou “O Homem da Sucursal”. Bonito demais, demais, demais da conta.
Vencedora dos dois Grammys concedidos na categoria de Melhor Disco de Jazz Alternativo, criada em 2024, Meshell Ndegeocello tinha a missão de encerrar a noite com um set de oitenta minutos, mas só tocou sessenta. Os primeiros vinte minutos foram uma espécie de “show de abertura surpresa/revelação”, com a dupla de músicos Jake Sherman (piano) e Abe Rounds (bateria) tomando o palco para mostrar as canções de “Finally”, disco produzido por Meshell e que busca resgatar sonoridades sofisticadas dos anos 1970, entre o fusion, o groove e o adult-oriented-rock. Funcionaria melhor se fosse uma piada levada a sério – mas levado a sério, acaba sendo uma piada. Sem perder mais tempo, porém, Meshell fez um show muito cativante. Quem esperava as canções balançadas de seu início de carreira, quando foi descoberta por Madonna, talvez tenha se frustrado, mas não foi um problema. Com um repertório pautado no disco “No More Water: The Gospel of James Baldwin”, uma homenagem ao escritor de romances como “O Quarto de Giovanni” (1956), ela e seu grupo passearam não só pelo jazz, mas pelo soul, pelo gospel e pelo folk de maneira muito interessante, mas não a ponto de triscar o nível dos melhores shows das temporadas anteriores.
A comparação pode parecer cruel, mas se faz necessária: justamente no ano em que o jazz ganhou seu espaço próprio em meio à programação do C6, o recorte teve seu desempenho mais fraco – e cujos melhores shows foram aqueles que talvez mais rezaram pela cartilha do que se pode chamar de “jazz clássico”. Mesmo sem Mulatu Astatke, é pouco não só para o retrospecto recente do festival, mas para o histórico da Dueto produzindo a dupla Free Jazz e Tim Festival. É verdade que as duas noites esgotaram ingressos a despeito do preço das entradas, mas nos dois dias era possível ver uma porção de cadeiras vazias, provavelmente reservadas a desinteressados convidados do banco que dá nome ao festival – um problema que também se reflete no buchicho desnecessário em muitas apresentações fora do Auditório.
Além disso, em uma escalação em que quase todos os nomes prestaram sua homenagem à música brasileira, chama a atenção o fato de haver apenas um artista local – baixa presença que se repetiu também no lineup “pop” do C6 Fest. Mais que isso, a escolha de um artista que está na crista da onda pareceu uma bola muito segura para uma curadoria conhecida pela ousadia ao longo de quatro décadas. É evidente que não é fácil superar a perda de connoisseurs como Zé Nogueira ou Zuza Homem de Mello, que cuidava do festival anteriormente. Contudo, um olhar atento para a programação de uma rede como o Sesc, por exemplo, já sugeriria saídas mais interessantes para o festival – dos mais novatos, como Conde Favela Sexteto ou Papangu, a veteranos que poderiam abrilhantar o evento, como Uakti, Egberto Gismonti, Airto Moreira e tantos outros.
Não se trata, claro, de sugerir só este ou aquele nome, mas dar um sentido a uma proposta mais que relevante: ajudar a abrir a cabeça e os ouvidos para a música de vanguarda & a vanguarda da música. É uma missão mais que honrosa – e que o lado “pop” fez com louvor em 2025, a despeito da baixa presença de conteúdo local. Que em 2026, a influência do “jáiz” possa ter mais peso no cômputo geral do C6 Fest. A música agradece.
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– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
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– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/