No filme Tardes de Solidão, o cineasta espanhol Albert Serra acompanha várias performances do toureiro Andrés Roca Rey. Estamos perante um desafio cinematográfico que merece ser visto e discutido pelos seus méritos e, sobretudo, os seus limites — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 maio).
Quando termina o genérico de
Tardes de Solidão, do espanhol
Albert Serra, deparamos com um aviso que ajuda a definir os seus méritos e limites. Assim, o retrato do toureiro Andrés Roca Rey seria... um não-retrato. Diz a legenda final: “Todas as imagens deste filme limitam-se a reflectir a celebração pública das touradas.”
Quando um cineasta se envolve com um assunto realmente fracturante — neste caso, as touradas —, não parece sensato supor que é possível rasurar o facto de qualquer narrativa, mesmo de modo inconsciente, produzir algum ponto de vista. Ao definir o filme através da “celebração pública das touradas”, dir-se-ia que Albert Serra nos quer fazer acreditar que um modo de filmar é apenas o resultado daquilo que se filma.
Sejamos pragmáticos — não se trata de lançar uma dúvida moral sobre o projecto. Albert Serra está apenas a tentar proteger-se das confusões polémicas que o seu filme não pode deixar de atrair, já que raras vezes se terá mostrado a prática dos touros de morte de forma tão explícita — tem todo o direito de o fazer, até porque haveria (ou há) razões para, desde logo no contexto espanhol, existir a expectativa de tais confusões.
Sublinhemos, por isso, o paradoxo: se alguma boa alma ainda tinha dúvidas sobre a barbaridade inerente às touradas, a par do simplismo abstracto da sua mitologia, então a avalanche de sangue e o sofrimento atroz dos touros que vemos em
Tardes de Solidão bastariam, sem qualquer abstração, para esclarecer tais dúvidas. Estaríamos, talvez, perante uma regra primordial de qualquer tratamento documental. A saber: dar a ver as coisas como elas são. Ora, aqui, mais do que nunca, importa contrariar a retórica gerada por essa regra, lembrando que a relação de uma câmara com um determinado universo nunca é acidental — porque é sempre selectiva.
Que acontece, então, em Tardes de Solidão? Uma espécie de montagem em loop que cola uma matança com outra matança, correndo o risco de se confundir com algumas linguagens televisivas dos nossos dias que tratam as tragédias mais sangrentas (Ucrânia, Gaza, etc.) tentando fazer-nos crer que a delirante repetição de imagens constitui, por si só, um acréscimo de conhecimento.
Ainda assim, não simplifiquemos. A postura altiva de Andrés Roca Rey e, sobretudo, o modo como os seus companheiros celebram as suas proezas ajudam a compreender o esquematismo moral de toda uma ideologia. Ou seja: um touro acossado, a sangrar abundantemente, face a um homem com uma espada letal seria a apoteose de um combate de absoluta igualdade. Como? Falta fazer um filme a partir do ponto de vista, não do toureiro, mas do touro — eis um interessante desafio cinematográfico para voltarmos a avaliar a “celebração pública das touradas”.