Entrevista: de Caxias do Sul (RS), o quarteto (de hc, pós-hc, emo) Borduna fala de seu novo disco, “Arranjos”

“Arranjos” é a mais recente etapa de uma trajetória que começa meio de brincadeira em 2014, com alguns integrantes ainda não tendo ultrapassado os 20 anos, e que ganha tração a partir de 2016

Jun 6, 2025 - 07:55
 0
Entrevista: de Caxias do Sul (RS), o quarteto (de hc, pós-hc, emo) Borduna fala de seu novo disco, “Arranjos”

entrevista de Leonardo Vinhas

Gravar em ordem cronológica de criação, mesmo que sejam necessários seis anos até conseguir entrar em estúdio novamente. Integrar banda, estúdio e selo em um coletivo voltado para a própria comunidade onde estão inseridos. Flertar com gêneros bastante dogmáticos sem se prender ao cânone de nenhum deles. Esse é um resumo fiel, mas ainda insuficiente, do ethos da Borduna, quarteto de Caxias do Sul (RS) que acaba de lançar “Arranjos” (2025), um álbum que merece sua atenção, seja você fã de hardcore, post-hardcore ou emo – estilo aos quais a banda é associada – ou principalmente se você não gosta desses gêneros.

Explica-se: “Arranjos” é um disco que se destaca pelo senso de composição da banda, que é cancioneiro em meio ao ruído e esquisito em meio à canção. Ao ouvir uma vez canções como “Travessia”, “Mantra” ou “Janelas Trancadas (Efeito Colateral)”, você já tem melodias e refrões imediatamente registrados na cabeça. Mas composições que têm elementos menos reconhecíveis de imediato, explorando tempos quebrados e timbres diferentes nas guitarras, convidam a visitas repetidas. É o caso de “O Estrangeiro” (com várias partes, e quase sete minutos de duração), “Homem de Lata” e “Condolências”, por exemplo. Com essa alternância, o álbum mantém sua dinâmica, e se revela como uma grata surpresa roqueira neste 2025.

Mas “Arranjos” é a mais recente etapa de uma trajetória que começa meio de brincadeira em 2014, com alguns integrantes ainda não tendo ultrapassado os 20 anos de idade, e que ganha tração mesmo a partir de 2016. O primeiro EP, que leva o nome da banda, só sairia em 2019, e um ano depois viria “514/s”, outro EP. Apenas dois singles seriam lançados até que “Arranjos”, o primeiro álbum completo, saísse. E nesse caminho, muita coisa mudou.

A banda montou um pequeno selo, Alforge Records, para lançar suas composições. O guitarrista Everton Severo montou o Divisa Studio, e foi gradativamente assumindo um papel mais ativo no desenho do registro sonoro da banda. E em paralelo, a banda foi fortemente sensibilizada pela pandemia, pelas enchentes em seu Estado e pelo descaminho geral da moedeira de almas que é o Brasil do século 21. A partir desse impacto, começaram a questionar o que poderiam fazer para a banda não ser só um momento de umbiguismo ou uma ilusão comercial.

A ideia foi tentar unir as três coisas – selo, banda e estúdio. Aos poucos, o Alforge começou a incluir outras bandas em suas fileiras. O Divisa Studio passou a ser uma opção acessível para artistas com poucos recursos. E agora chegou o momento de pensar como a própria Borduna pode ser parte dessa movimentação, e continuar sendo fiel a si mesma.

É nesse momento que a banda – formada por Severo, Cleber Mignoni Zeferino (baixo e vocais), Bruno Vasconcelos (bateria) e Rudinei Picinini (vocais) – conversa com o Scream &Y ell. Na charla, Severo e Picinini, também letrista, entabularam um papo que incluiu a gênese de “Arranjos”, a cena de Caxias do Sul, e as razões para se ter uma banda.

Esse disco tem um salto em relação aos anteriores, tanto na qualidade das composições como da produção. Qual foi o ponto de partida para o nascimento de “Arranjos”?
Rudinei Picinini: Todas as músicas que estão neste disco foram feitas até 2018. “Travessia” e “Hino dos Esquecidos” foram as últimas que a gente fez nessa leva. Boa parte delas já estavam feitas quando lançamos o primeiro EP. E esse foi um trabalho muito difícil de lançar, tanto por questões de estrutura quanto de investimento, mas a gente sempre manteve a ordem cronológica das criações. A gente sempre discutiu se ia ser daquelas bandas que ia compor muito e descartar boa parte do que criava para triar o melhor do que fez, ou se íamos registrar tudo que fosse potencialmente interessante para ter nosso próprio histórico de progresso. E no fim, como a gente sempre fez tudo de forma independente e sem dar satisfação para ninguém, esse segundo caminho foi o mais interessante. Por isso temos gravado em ordem cronológica.

Vocês pegaram músicas feitas em um momento totalmente diferente, tanto do ponto de vista artístico quanto pessoal. Não rola uma assincronia?
Rudinei: A gente tenta compor de uma maneira mais aberta, e infelizmente a temática de algumas composições são atemporais, muitas das angústias e das questões ainda conversam com o momento atual. E eu não tenho uma lógica quando vou criar, mas me inspiro muito na literatura, no sentido de não ser tão direto, de querer ser mais aberto mesmo. A gente traz informações e referências, mas deixa algumas interpretações abertas para que o ouvinte possa se identificar. No punk e no hardcore tem quem seja muito mais direto, e isso é legal também, mas a gente foi para outro lado, e isso traz novos significados para os sons. Por exemplo, “Travessia” foi feita no contexto político de 2018: a gente sabia que o pior estava vindo, mas que a gente tinha que encarar aquilo como uma travessia, e não como o nosso fim ou como a extinção do nosso futuro. A própria pandemia também deu outros significados a essa faixa, manter a banda viva foi uma travessia, a gente teve que passar por isso. Depois que o single saiu, outras coisas começaram a aparecer, teve quem veio falar comigo e com os guris, dizendo que a música remetia a questões de saúde mental que essas pessoas viveram nos últimos anos. Acabou que a canção virou um lugar para as pessoas poderem existir nos termos delas, algumas outras canções também têm esse espaço, e é isso que estamos tentando amadurecer nas nossas experimentações.

E como fica para o som não ficar datado? Porque as referências musicais também mudam ao longo do tempo.
Rudinei: Pode acontecer, mas a gente sempre trabalhou de forma que o som não parecesse datado. Essa preocupação a gente tem desde o começo. Mas claro, as nossas percepções mudam conforme a gente vai ganhando bagagem. A gente não quer ter uma visão ortodoxa de estilos pelos quais a gente trafega, nosso norte de criação é justamente a escola progressista do hardcore e seus subgêneros. Mas nunca fizemos ajustes nas letras, a não ser em “Mantra”, que tinha um tom mais apaziguador, e quando a gente foi retomar os ensaios e se ouviu, vimos que não era isso que a gente queria falar. Ou melhor, a gente nem acreditava mais naquilo. Mas nas outras tinha uma certa atemporalidade na construção lírica, mesmo que não fôssemos mais os mesmos.

É interessante você colocar a banda no hardcore. Porque claro, tem coisas que podem ser chamadas assim no som de vocês, mas tem também um lado forte daquela leva do emo como Rites of Spring, Mineral, os primeiros discos do Sunny Day Real Estate… E tem um bom tanto de post-hardcore, uns ritmos mais quebrados, uns tempos meio malucos (risos). Além disso, vocês têm muitas referências musicais que não passam nem perto desses estilos. Como isso deixa a Borduna no cenário hardcore do Rio Grande do Sul?
Everton Severo: Na nossa primeira turnê – e única, até agora – a gente foi tocar em Florianópolis com a Budang, uma banda que estava fazendo seu segundo show ali. Eles são de um hardcore mais New York, quase extremo, e aí a gente percebeu que nosso som não é hardcore (risos). O som dos caras era mais direto, mais agressivo, e a nossa personalidade mesmo não é pra esse lado. O Rudi, você pode ver, é um cara tranquilo, nossa forma de compor não é agressiva. A gente procurou fazer uma sonoridade que a gente gostasse, mas que se encaixasse com o que o Rudinei quisesse cantar. Tem quem estranhe o resultado, falando que nosso som é agressivo, mas a voz não. Mas a gente procurou abraçar isso como algo nosso e fez disso nossa característica. Isso fez com que a gente se afastasse de ser uma banda hardcore ou uma banda emo.

Rudinei: Ainda hoje a gente referencia o hardcore como um ponto de partida, só que hoje a gente o entende mais como um espectro do que como um gênero específico. Quando se fala em hardcore, as pessoas pensam principalmente no hardcore californiano do fim dos anos 1980 e começo de 1990. Mas a gente vai nos festivais e vê o hardcore punk, o hardcore novaiorquino. o flerte com o crossover, o metal, o emo, o post-hardcore – que é que estamos vendo muito fonte onde beber e buscar referências. Então o hardcore não é um gênero estático, várias bandas que estão circulando hoje na cena dos EUA estão misturando o estilo com shoegaze, dream pop, até com a pegada mais arrastada do grunge. O gênero avançou para outras direções.

Severo: E falar de influências é muito difícil, porque nossa vida no dia a dia é influenciada por algo a todo momento. A gente se inspirou no discurso mais politizado do hardcore, mas a gente sempre ouviu de tudo, de pós-MPB a punk, jazz, hip hop. Todos os gêneros falam, de alguma forma, algo que nos apetece.

Arte da capa de “Arranjos”, do Borduna

O que vocês querem com a Borduna? Afinal, é uma banda que pretende se movimentar tanto no campo artístico como político, mas banda é um rolê caro, ninguém aí é herdeiro ou está permanentemente atrás do próximo edital. Assim, repito: o que vocês querem com a Borduna?
Severo: Isso é muito bom! Teve um dia que a gente parou para conversar sobre isso, mas vou deixar essa para o Rudinei responder, porque ele vai saber sintetizar a melhor. Porque a gente já teve várias formas de pensar sobre a mesma coisa, e hoje a gente está num momento mais pacífico do negócio, aceitando mais a vida como ela é, e o Rudi vai saber explicar.

Rudinei: A gente precisou pensar bastante nisso durante a pandemia, e também com a chegada dos 30 anos, conforme todo mundo foi avançando em alguns pontos da vida. Tem duas coisas: a gente sempre fala que produzir música autoral com a Borduna é o modo que a gente encontrou de ser fiel a si mesmo. A vida inteira a gente está produzindo algo sob demanda para ser recompensado monetariamente, para ir atrás da próxima lista de compras. Parece que muitas vezes a vida se resume a isso, então conseguir produzir algo que não está sendo buscado no Google é uma das coisas mais gratificantes que a gente tem. É uma válvula de escape, é uma ferramenta de descoberta e de autodescobrimento. E a outra coisa é que, muitas vezes, usamos as músicas para falar de temas sobre os quais é difícil falar, temas difíceis de expandir numa conversa do dia a dia. Agora, se for pensar em ambições, a principal é ser relevante localmente. Tudo que for para além disso vai ser um grande bônus, mas a gente quer construir esse símbolo local de alguém que produz e mostra que é possível produzir mesmo não estando em um grande centro hegemônico cultural. Se a gente não se desloca para esses centros hegemônicos, parece que nada vive ou perdura por muito tempo. Então resistir produzindo no extremo Sul é uma forma de transformar o entorno, movimentar em microrrevoluções o que a gente pensa como o imaginário cultural para a vida. Claro, esse extremo Sul tem certo desenvolvimento econômico, mas não tem uma construção artística tão cristalizado como se vê no Sudeste ou em algumas capitais. Então é muito interessante quando tu descobre que teu vizinho escreve e está participando de concursos literários, ou que tua tia distante pintava quadros e tem vários deles espalhados por aí. Isso vai criando outro estímulo, outra direção de vida, e quero que no futuro a gente seja o vizinho, o tio, que tinha uma banda, que produziu algo além do que aquilo que era uma obrigação para subsistência, e que as pessoas possam espelhar suas ambições de projetos de cultura no nosso exemplo.

E o quanto o estúdio do Severo se interliga com o trabalho da banda no sentido de fomentar a cena?
Severo: Bah, eu acho que o estúdio é o início de tudo, no sentido de produção. A Borduna surge num porão, quando a gente não tinha nenhuma condição de gravar e eu não sabia produzir nada. Eu tenho a impressão de que o estúdio foi o epicentro para as coisas começarem a andar, porque até 2018, não tinha estúdio nem dinheiro para começar a produzir, até que em uma conversa com o Rudi ele me disse que eu deveria me arriscar a produzir com algumas pessoas. Na época, eu trabalhava no Sesc e já estava pensando em montar um pequeno estúdio para produzir a Borduna. Mas isso foi escalonando. Quando a gente montou a primeira salinha – que era no meu quarto – já começamos logo a produzir. Tínhamos gravado o primeiro EP em São Leopoldo e não ficamos felizes com o resultado, então refizemos uma parte aqui, bem coisa de banda que está iniciando. Com isso, o nosso selo mudou de nome, a gente começou a pegar umas bandas da cidade, como a Teto. Eles não tinham muitas condições, então abraçamos os guris e gravamos umas coisas com eles, e a gente ainda hoje tenta fomentar isso para as bandas locais, com um valor acessível, quase simbólico, para que todo mundo consiga circular. Porque a gente também tem que pagar as contas, né, e no meu caso virou uma profissão, além de uma forma de catapultar o trabalho musical. Mas tá dando para formar uma teia cultural de bandas que se apoiam.

Rudinei: Também não tinha ninguém próximo que produzisse o tipo de som que a gente faz. Nos últimos anos, o Severo foi se dedicando a estudar o tipo de som que a gente faz para saber como viabilizar uma sonoridade de acordo com as nossas referências. Isso abriu um leque bem interessante, as bandas vêm para o estúdio sabendo o tipo de som que vão encontrar, e isso ajuda a criar uma unidade. Um dos aprendizados que tive com o Severo é a visão de escutar muita coisa que vai para além dos subgêneros que a gente escuta, e é por isso que ele também tem entrada em outras cenas, como a do hip hop. Isso mostra como o estúdio está se expandindo para outras regiões da cidade, chegando a pessoas que se encontram no mesmo patamar que em que a gente se encontrava em 2014, 2016: sem estúdio, sem saber onde começar, sem saber onde buscar apoio. O ritmo ainda é embrionário, porque o Severo é um só, mas isso pode se expandir no futuro para projetos mais robustos, porque Caxias do Sul tem potencial. A cidade só carece de pessoas que tenham o conhecimento necessário e abracem a cena para dar o apoio que a cena precisa para crescer.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e autor do livro “O Evangelho Segundo Odair: Censura, Igreja e O Filho de José e Maria“.