Música: Valerie June retorna com novos feitiços em “Owls, Omens and Oracles”

"Owls, Omens, and Oracles" é um lembrete de que apesar de todo o terror da sociedade contemporânea ainda somos humanos e há beleza em olhar o mundo com encantamento.

Jun 3, 2025 - 09:55
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Música: Valerie June retorna com novos feitiços em “Owls, Omens and Oracles”

 texto de Luiz Espinelly

Depois de receitar sonhos em 2021 com “The Moon and Stars: Prescriptions for Dreamers“, Valerie June retorna com novos feitiços. “Owls, Omens and Oracles” (2025, Concord Records), lançado em abril, amplia ainda mais sua jornada espiritual e musical. Acompanhada por M. Ward (She & Him) na produção, June parece se aprofundar no mergulho cósmico que começou em seus trabalhos anteriores, com segurança e liberdade artística raras em dias de playlists e impacto medido por números de seguidores em redes sociais.

“Owls, Omens, and Oracles” percorre caminhos místicos em que o soul, o R&B, o country e a psicodelia dançam à luz de uma fogueira sob o céu de Marlboro, como se sempre tivessem habitado o mesmo universo. No entanto, a produção mais pop, as colaborações bonitas e o clima onírico do disco não são o suficiente para esconder o peso maior do lado melancólico.

Ainda que o álbum abra exalando otimismo com “Joy, Joy!”, em uma de suas faixas menos inspiradas, ela sabe que “Has this old world been hard and rough”. Na sequência, o disco logo engata e em “Endless tree” as coisas já funcionam muito melhor. No chão seguro da Americana que remete aos seus trabalhos anteriores, a trovadora pergunta: “Are you ready to see / A world where we could all be free?”. Eu quero estar.

“Inside Me” traz um intimismo que impressiona. Confessional, Valerie explora a relação com o próprio corpo e espírito e fala daquilo que carrega por dentro com a sabedoria de quem aprendeu a não se desculpar. A produção aqui minimalista de M. Ward deixa espaço para que a voz peculiar da feiticeira sulista cresça em camadas, com um ‘call and response’ bonito misturado com spoken word que brilha no cantinho da mixagem, como uma fogueira que vai acendendo aos poucos até iluminar a escuridão da noite. Ou isso é magia e June aprendeu a ler o futuro nos detalhes da natureza e estamos ouvindo a canção que ela cantou no caminho. É assim tão bonito.

Quando chega em “Love Me Any Ole Way” o ouvinte já está arrebatado. Guiada por baixo e sopros dignos da Stax, a cantora mostra que tem a alma de Memphis e louva o amor sem amarras, num pedido de aceitação que ecoa como um mantra em tempos de performance afetiva: “In the darkness, hold my hand / Tell me you understand”. A crueza e ternura desses versos traz uma sinceridade capaz de emocionar punks velhos. Soul é foda.

O disco ainda conta com a participação especial dos lendários The Blind Boys of Alabama, em “Changed”, emprestando sua espiritualidade e décadas de experiência a momentos que mais parecem orações cantadas. Já Norah Jones, que havia brilhado em “I Got Soul”, de “The Order of Time” – talvez o ponto alto da carreira de Valerie até aqui – retorna para encantar em “Sweet Things Just for You”, a faixa mais suave do novo registro.

O disco é um pouco irregular. As faixas mais pop são abaixo do que a sacerdotisa de Memphis pode fazer, mas nunca genéricas. O álbum – ainda que mire claramente em ampliar o público da cantora – parece ter sido composto com os olhos voltados para dentro e os pés fincados em chão sagrado. Não é à toa que o título convoque corujas, presságios e oráculos, três formas de escuta atenta que não se contentam com a superfície.

Valerie nos oferece aqui mais que um conjunto de canções, ela evoca um ritual sonoro para tempos confusos de governo Trump, genocídio e avanço da extrema-direita. Onde antes ela parecia buscar respostas nas estrelas, agora ela escava o solo, as raízes e sua ancestralidade em busca de segurança – Humberto Gessinger was right?

Após percorrer essa jornada, Valerie June se transforma no próprio oráculo, como uma ponte entre o passado spiritual da música negra americana e um futuro em que alma, ancestralidade e afeto se encontram sem pedir licença. Em tempos de algoritmos e cinismos, “Owls, Omens, and Oracles” é um lembrete de que apesar de todo o terror da sociedade contemporânea ainda somos humanos e há beleza em olhar o mundo com encantamento. Quem ouvir com o coração e atenção conseguirá escutar os segredos antigos sussurrados em cada faixa. Ouça na integra abaixo!

– Luiz Espinelly, professor de literatura e guitarrista da Josephines: https://josephines.bandcamp.com/