Entrevista: godofredo fala sobre novo single, “Filme da Varda”, e o lo-fi como alternativa na era do tutorial
As influências da godofredo são diversas: Pavement, Stereolab, Guided by Voices, Beat Happening, Paralamas, Fellini, Akira S & as Garotas que Erraram, pós punk anos 1980 e rock argentino

entrevista de Alexandre Lopes
Jane Birkin se foi. Agnès Varda também. Mas suas ideias continuam em movimento — como se tropeçassem pelas ruas esburacadas e calçadas mal cuidadas de Belo Horizonte, cidade onde a banda godofredo dá continuidade ao legado de sensibilidade das duas artistas no single “Filme da Varda”. Lançada em abril, com clipe dirigido por Anna Laranjeira, a faixa antecipa o vindouro disco “Tutorial”. Com referências ao cinema francês e uma sonoridade doce que ecoa o rock alternativo lo-fi, a música costura pequenas epifanias cotidianas com delicadeza.
A inspiração veio do filme “Jane B. por Agnès V.” (1988), em que Varda traça um retrato íntimo da atriz, cantora e musa Jane Birkin. Na letra, Camila Soares — baixista e vocalista — entrelaça sua própria visão de mundo à da protagonista do filme. “Escrevi num momento da vida em que me sentia aberta às pessoas, pronta para me apaixonar, mas ainda entendendo quais vivências queria seguir. Assistindo ao filme, me senti ainda mais preparada para me afastar daquela visão idealizada da juventude e buscar experiências mais simples”, conta Camila.
O clipe, protagonizado por ela e realizado por uma equipe inteiramente composta por mulheres e pessoas não-binárias, transparece o posicionamento estético e político da faixa e dos seus autores. Junto com “Guarda-Roupas” (o primeiro single lançado em fevereiro), “Filme da Varda” marca uma fase mais colaborativa, madura e coesa da godofredo. Agora formada por Camila, Vinicius Cabral (vocais e guitarra), Gabriel Elias (guitarra) e Rodrigo Piteco (bateria), a banda volta após um hiato de cinco anos desde “Arquivos Vol. 3” (que apesar do nome, é o disco de estreia), álbum lançado durante a pandemia. “No primeiro ensaio entre eu, Camila e Elias já teve música nascendo”, lembra Vinicius. Com a nova formação, o quarteto se encontrou e passou a lapidar uma nova identidade.
O título do novo trabalho, “Tutorial”, carrega ironia e crítica contra a lógica digital contemporânea. “Hoje em dia as pessoas precisam de instruções para fazer tudo. Tipo vídeo de TikTok pra aprender a regar uma planta, ou ChatGPT pra ensinar a limpar a bunda”, provoca Vinicius. “Fizemos um disco que a gente sabe que meio que teria que ensinar as pessoas a ouvir. Um tutorial pra passar pelas faixas, na ordem que pensamos pra elas.” O álbum está sendo lançado pelo selo Estúdio Central, também responsável pela gravação. Fundado por Gabriel Elias, o Central se tornou um novo ponto de encontro da cena independente mineira e mais um lugar onde coisas interessantes acontecem longe dos filtros estreitos do eixo Rio-São Paulo. “Tudo se resume à concentração de capital em torno da cidade [paulista]. E consequentemente isso faz com que as coisas comecem a obedecer uma fórmula, um modus operandi, e as pessoas não se esforçam para sair disso. E isso piora e muito a circulação de bandas no Brasil, quando vamos desbravar o nosso interior? O Brasil é gigantesco e sinto que musicalmente, tudo se resume a São Paulo, para a mídia”, comenta Elias.
As influências da godofredo são diversas: Pavement, Stereolab, Guided by Voices, Beat Happening, Os Paralamas do Sucesso, Fellini, Akira S & as Garotas que Erraram, punk dos anos 1980 e rock argentino se misturam sem hierarquia. E com esse cardápio, o grupo encontra espaço para ampliar o espectro da banda. Se o disco anterior apostava num lo-fi introspectivo, “Tutorial” expande os arranjos, explorando camadas melódicas com guitarras, teclados e violões. O resultado é um som que transita entre o analógico e o estranhamento do mundo digital no indie brazuca. “A gente resolveu assumir totalmente uma estética que lá fora já tá no auge (vide Cindy Lee por exemplo). Não em termos de gravação mais ‘tosca’, ou caseira, mas no sentido de uma fluidez de banda que não tá muito preocupada com uma produção quadradinha, técnica. Não do jeito que o indie passou a ser produzido no Brasil hoje”, compara Vinicius.
Enquanto se prepara para lançar “Tutorial”, considera uma mini-turnê de divulgação e já declara empolgação para gravar um próximo disco, a godofredo aposta que, no meio de um fluxo incessante de informações rápidas e descartáveis, ainda há espaço para beleza, espontaneidade e canções feitas com coração. Que Birkin e Varda — onde quer que estejam — possam ouvir esse registro sensível da força que há em viver com menos pressa e filtros, com mais presença. Confira a entrevista completa com Vinicius e Elias abaixo.
Para começar com uma curiosidade: de onde surgiu o nome da banda? É uma homenagem ao pai do Beto Guedes?
Vinicius: Também. Temos duas versões pro nome. Uma é essa (Godofredo Guedes). A outra, que também é verdadeira, é que eu tinha um robozinho na infância que chamava godofredo. Era um robô desses clássicos, com uma TV na barriga. Era uma coisa meio afetiva, meio vídeo-instalação infantil. E também é um nome sonoro, já meio musical. Encaixou tudo, porque a banda tem um lado “canção infantil degenerada” que acho que tá bem nítido agora nesse disco. E tem dois papais de bebês na banda, ou seja…
Elias: Sempre achei que fosse um nome de um gato, lembro de quando eu vi pela primeira vez no Spotify, me cativou de cara.
Entre o lançamento de “Arquivos Vol. 3” em 2020 e o novo disco se passaram alguns anos. O que aconteceu?
Vinicius: Foram longuíssimos 5 anos. O Dedeco [ex-guitarrista] saiu e foi formar a Paira, mas mesmo antes disso a gente já tinha incorporado o Elias e a Camila. Depois veio o Rodrigo, que assumiu as baquetas de um jeito genial. Acabamos consolidando um grupo com uma química bem única – no primeiro ensaio entre eu, Camila e Elias já teve música nascendo. Então o que aconteceu foi que a pandemia durou muito mais do que o previsto, e que o 1º disco não circulou em turnê. Então quando as coisas começaram a abrir a gente já tinha essa nova banda, e começamos a circular com o repertório antigo, introduzindo aos poucos músicas novas, que fomos fazendo até termos um repertório que dava pra gravar. Foi um hiato pra renascer a banda mesmo, e criar uma nova identidade a partir daquela ideia original lá de trás que, querendo ou não, era muito focada em mim. Agora a coisa evoluiu mais como banda.
Elias: É meio engraçado porque eu lembro do meu primeiro ensaio com a godofredo, eu ia entrar no baixo e o Vini e o Rodrigo iriam para guitarra e bateria respectivamente. Mas sempre ficava faltando algo, nesse meio tempo a Camila estava de mudança para Belo Horizonte e tinha comentado que tinha uma amiga que tocava baixo, o Vini conversou e foi isso que rolou. Acho nossa banda bem única, uma química muito intensa entre os quatro, que vão virar cinco daqui a pouco.
Como foi a experiência de produzir os clipes de “Guarda-Roupas” e “Filme da Varda”? Eles foram pensados como parte do conceito do disco ou obras à parte?
Vinicius: “Guarda-Roupas” tem mais a ver com o disco. “Filme da Varda” já é mais independente, uma obra à parte. Em “Guarda-Roupas” a gente precisava apresentar a banda nesse novo formato. E o clipe pega esse clima. Foi gravado no Estúdio Central, que é onde gravamos o disco e é o nosso selo também. O figurino teve todo um rolê de interpretar as identidades de cada um na banda, etc. E, claro, acho que de todas as canções, essa era a que contava melhor a história do próprio álbum. “Filme da Varda” já é uma música com uma referência ao cinema, então o clipe mergulhou muito nisso.
Elias: Em “Guarda-Roupas” eu sempre pensei abertamente em fazer uma música infantil para o filho do Vinicius, lembro de me perguntar o que essa criança escutaria e fiquei com vontade de fazer uma homenagem pra ela. Em contrapartida, o Vini fez uma letra sobre o meu processo de mudança e o nascimento do Estúdio Central. Já em “Filme da Varda” sempre pensei em músicas americanas dos anos 50, trabalhamos muito com imagens e a forma como cada um percebe elas. Acho a godofredo a minha banda mais esotérica, estamos ligados de maneiras estranhas e temos uma relação meio simbiótica na composição e produção.
Por que o nome do novo disco é “Tutorial”? Existe um conceito ou ideia central por trás desse título?
Vinicius: Existe. Veio um pouco da ideia de que hoje em dia as pessoas precisam de instruções para fazer tudo. Tipo vídeo de TikTok pra aprender a regar uma planta, ou ChatGPT pra ensinar a limpar a bunda. Fizemos um disco que a gente sabe que meio que teria que ensinar as pessoas a ouvir. Um tutorial pra passar pelas faixas, na ordem que pensamos pra elas, etc. Então a ideia é dar uma alfinetada nesse contexto da informação que vai evaporando, que não tem retenção, não vira conhecimento. A gente quer fazer um disco pra ficar. E pra isso é necessário pegar a galera pela mão mesmo. Bora fazer um faixa a faixa? (risos)
Elias: Estranho você falar isso (sou o mais desatento da banda e o pessoal provavelmente já comentou sobre esse significado várias vezes), mas pra mim sempre foi um tutorial de como lidamos com essa nova fase da vida que a godofredo se coloca. Pra mim é um álbum extremamente pessoal sobre quatro pessoas que se juntaram e tem uma banda. É um disco de primeiras coisas (mesmo sendo o segundo da godofredo); nosso primeiro juntos, o primeiro que lançamos pelo selo do Estúdio Central. De certa maneira é um tutorial sobre a gente também.
“Tutorial” tem uma sonoridade mais ampla, com mais guitarras, teclados e violões, se distanciando um pouco do indie lo-fi mais básico do primeiro disco. Além da nova formação, o que houve de diferente em relação ao disco anterior?
Vinicius: Acho que tem, realmente, uns arranjos mais diversos, com teclados, e tal, mas em vários sentidos acho ele ainda mais indie lo-fi. Na verdade isso tem a ver com termos gravado tudo de forma analógica, experimentando bastante no estúdio. A gente resolveu assumir totalmente uma estética que lá fora já tá no auge (vide Cindy Lee por exemplo). Não em termos de gravação mais “tosca”, ou caseira, mas no sentido de uma fluidez de banda que não tá muito preocupada com uma produção quadradinha, técnica. Não do jeito que o indie passou a ser produzido no Brasil hoje.
Elias: Discos tem sido uma questão, hoje em dia sinto que aqui fugimos muito desse formato, mas que lá fora, nunca esteve tão forte. Outra coisa que tenho sentido muito são os artistas cada vez mais fazendo álbuns em locais que eles se sentem confortáveis e menos em estúdios gigantes com equipamentos que podem custar uma casa inteira. Aqui no estúdio, temos equipamentos honestos, mas muito distantes de um estúdio high end. Mas estranhamente me senti mais em casa produzindo aqui (não só por ser a minha casa), mas pelo fato que a atmosfera de organização, experimentação e criatividade, lembra como se a gente tivesse em casa. Eu encaro como um disco lo-fi, mas ao mesmo tempo tenho recebido vários comentários das pessoas que acharam a produção muito boa e bem-feita. Temos que repensar o papel do estúdio na produção de um artista.
O álbum será lançado pelo selo Belo Horizonte Central. Como surgiu essa parceria?
Vinicius: O Central é o estúdio do nosso guitarrista, o Elias. Ele foi fundado há um ano, que foi quando começamos a gravar o disco. Logo depois o Central começou a fazer eventos também, e acabou virando em pouco tempo uma referência nisso aqui em BH, que tá passando por muitas transições. Foi natural a transição disso tudo pra selo, quando notamos que tinham muitas bandas legais começando e circulando por aqui. Aí resolvemos engrossar o caldo. “Tutorial” é o primeiro álbum lançado pelo Central, mas tem bandas na fila pra lançar, como Escadacima, ursamenor, Cayena e Tênias de Chinelo.
Elias: Foi muito natural essa parceria, eu sempre quis ter um selo (risos). Mas pra mim ter um selo passa muito por ter um local para ele funcionar, acho que sou muito materialista e entendo que precisamos de locais físicos para podermos ter como nos expressar. Não adianta nada termos diversos selos, mas esses selos não terem ligações com locais e pessoas, fica muito impessoal e muito na ideia, coisa que eu sou extremamente avesso.
O som de vocês claramente carrega influências de guitar bands dos anos 90, como Pavement, Guided by Voices e Stereolab. Além destes nomes, o que mais inspira vocês que não está tão evidente nas músicas?
Vinicius: Acho que a influência mais invisível que temos é Os Paralamas do Sucesso (risos). Me inspiro muito nas métricas e nas letras no Herbert [Vianna], e acho os caras a grande banda do rock brasileiro. Acho que são as referências brasileiras que ficam mais em segundo plano, infelizmente. Fellini, Picassos Falsos, Chance, Akira S & as Garotas que Erraram. Tem todo um rolê do punk e do pós-punk brasileiro, anos 80. E, claro, acho que carrego muita influência do rock argentino, sempre. Tirando isso temos as referências gerais da banda, que pendem mais pras guitar bands dos 90, mas o Elias sempre traz coisas mais obscuras. Mas no fundo, acho que nós estamos mais ligados no rock alternativo atual, que acho muito rico. Pra fechar: Beat Happening, no aspecto meio “melodia infantil e foda-se”, foi uma enorme referência pro disco.
Elias: Acho que eu tento ser uma mistura de David Pajo, Gabriel Ventura e Jeff Parker, agora se eu consigo é outra história (risos). Pra mim o Ventura, (junto do Kiko [Dinucci]), é o melhor guitarrista brasileiro dos últimos 10 anos. O disco solo dele é coisa de maluco, sou fã assumido. Mas nesse álbum eu brinquei de querer ser o [Stephen] Malkmus (risos), acho que me influenciou muito no trabalho dele no The Jicks e na maneira desconexa centrada que ele toca. Normalmente não sou o guitarrista solo em minhas bandas, mas na godofredo eu sou e gosto de exercitar esse meu lado, me dá coragem pra fazer outras coisas.
O primeiro disco da godofredo saiu em meio à pandemia. Como vocês enxergam as mudanças da cena independente desde então?
Vinicius: Mudou tudo. Pra pior. Me parece que o retorno dos festivais e de alguns circuitos em novas casas de show deu uma glamourizada. Isso aparece no som das bandas que tem despontado hoje. Há um alternativo meio pasteurizado. A gente quer ir na contramão, mas sei que vamos pagar um preço por isso.
Elias: Brinco que a música refletiu e muito essa nova fase do capital que estamos. Vivemos o delírio distópico que a banda Séculos Apaixonados falou em 2016, “Ele Também Foi Para São Paulo”. Tudo se resume à concentração de capital em torno da cidade. E consequentemente isso faz com que as coisas comecem a obedecer uma fórmula, é meio chato falar isso, mas sinto que as coisas estão bem plásticas ultimamente, têm um modus operandi e as pessoas não se esforçam para sair disso. E isso piora e muito a circulação de bandas no Brasil, quando vamos desbravar o nosso interior? O Brasil é gigantesco e sinto que musicalmente, tudo se resume a São Paulo, para a mídia.
Vinicius também participou do The Innernettes e assina músicas da Paira, projeto do Dedeco, ex-membro da banda. Como esses projetos dialogam (ou não) com a sonoridade da godofredo?
Vinicius: The Innernettes é uma loucura à parte. Não tem nada a ver! (risos). Acho que a Paira também é um projeto muito autoral do Dedeco e da Clara Borges. Eu faço boa parte das letras deles, até aqui, mas é uma experiência meio ghost writer (risos). Nunca tinha tido essa experiência, mas essa escrita me ajudou a manter um padrão lírico do qual tenho me orgulhado muito. É importante destacar que o Elias foi da banda Mineiros da Lua (ou ainda é?) e da Aquiles. Toca também em várias outras bandas da cena de BH hoje. A Camila toca atualmente na Gaspacho, que é uma banda que de certa forma continua o legado da sua ex-banda, Olympia Tênis Club, lá de Juiz de Fora. E o Rodrigo também tem outros projetos. Adora tocar bateria pra lá e pra cá. É um gênio.
Elias: Sobre a Mineiros, nem eu sei que pé que tá a banda (risos). Ia ter um disco, mas não sei mais. Acho que eu sou muito singular em cada banda, a godofredo é a banda que eu sou o guitarrista e produtor, gosto muito desse papel e como ele tá de acordo com o que eu quero fazer na banda. Além da Mineiros, toco na Dédalos, Kosovo e Aquiles. Em cada uma assumo um papel que a banda precisa e me ajuda a sempre estar praticando minha criatividade.
Além do lançamento do novo disco, o que mais vem por aí? Quais são os próximos planos da banda?
Vinicius: Show de lançamento, gravação de session e mini-turnê. Isso é o mínimo. Mas já temos o repertório do próximo disco na gaveta. O plano é entrar em estúdio no final do ano. Como ficamos muito tempo sem lançar nada, acumularam-se as canções. E o próximo disco vai ser ainda melhor.
Elias: Mini-turnê? Estava achando que finalmente iríamos fazer as 20 datas em um mês. Brincadeiras à parte, acho que já estamos pensando no disco novo e como ele vai sair da gaveta. Mas acho que vai ser bom botar esse disco na roda, testar ele para diversos públicos e ver se conseguimos rodar o Brasil. É isso.
– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br.