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À luz das velas, ou o perfeccionismo de Kubrick |
Uma memória de Cannes: rever Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick, é reencontrar a vibração sensual das imagens pré-digitais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 maio).
Ao longo deste século, os festivais de cinema têm aberto as suas programações aos filmes clássicos, mais ou menos “antigos”. Não se trata de um banal gesto de nostalgia. Estamos perante um sinal da consciência da memória ou, mais exactamente, da possibilidade de perda da memória. Isto porque, muito para lá do cinema, a definição do presente torna-se tanto mais volátil, eventualmente manipulável, quanto o esquecimento for uma regra dominante na sociedade.
Também neste domínio, o Festival de Cannes continua a ser uma referência modelar. Em boa verdade, podemos mesmo dizer que, em termos proporcionais, a secção
Cannes Classics é a que mais cresceu ao longo dos últimos 20 anos. Primeiro, o incremento das cópias restauradas correspondia, sobretudo, à crescente importância do formato Blu-ray, ideal, justamente, para difundir os clássicos que tinham sido tratados para recuperar as qualidades das suas imagens originais; depois, com a consolidação das plataformas digitais, surgiu uma importante via de difusão de novas cópias de títulos marcantes na história do cinema. Os filmes restaurados (de autores tão emblemáticos como Alfred Hitchcock ou Ingmar Bergman) recuperaram mesmo o seu lugar nas rotinas das salas escuras — Portugal é um bom exemplo disso mesmo, sobretudo graças à acção de alguns distribuidores e exibidores do chamado circuito independente.
Em Cannes, este ano, dois filmes ilustraram de forma sugestiva a sedução dos clássicos. Estando ambos a comemorar meio século de existência, nunca deixaram de ocupar um lugar de evidência no imaginário popular da cinefilia. São eles
Voando sobre um Ninho de Cucos, parábola política sobre as diferenças individuais realizada por Milos Forman, e
Barry Lyndon, epopeia social e política alheia às convenções da “reconstituição histórica” com que Stanley Kubrick, inspirando-se no romance de William Makepeace Thackeray (1811-1863), nos “obrigou” a rever a visão meramente decorativa, porventura pitoresca, do século XVIII britânico.
Se evocarmos um fotograma, apenas um, das cenas de Barry Lyndon iluminadas a velas podemos redescobrir, compreender e reavaliar um desafio que, literalmente, ficou para a história. Assim, o lendário perfeccionismo de Kubrick levou-o a colocar uma exigência radical ao seu director de fotografia, John Alcott (que, em 1972, já assinara as imagens de Laranja Mecânica): as cenas de interiores, nomeadamente nos salões da aristocracia, deveriam ser iluminadas apenas pelas velas que, obviamente, na época, eram a única fonte de luz...
O cumprimento do desafio foi quase total (por vezes, Alcott recorreu a discretas iluminações gerais e alguns reflectores). De tal modo que, para ser possível gerar uma imagem que desse a ver o efeito da luz das velas, em particular nos rostos dos actores, Kubrick conseguiu convencer a NASA a emprestar-lhe as
lentes que a Zeiss desenvolvera para uso dos astronautas americanos na superfície lunar. Daí que faça sentido, por razões de uma só vez técnicas e românticas, celebrar a singularidade de tal proeza num filme de 1975. Dito de outro modo: estamos ainda longe das imagens digitais, já que
Barry Lyndon é um produto clássico de registo em película (que, convém não esquecer, o cinema está longe de ter abandonado).
Neste como noutros domínios da expressão artística, não creio que faça sentido demonizar o digital — é, ou pode ser, um instrumento de trabalho tão útil como qualquer outro. Além de que, não simplifiquemos, podemos citar múltiplos exemplos das suas potencialidades, a começar por A Arca Russa (2002), de Alexander Sokurov. Lembremos apenas que o grão das imagens de Barry Lyndon envolve uma vibração que começa na sensualidade dos detalhes, como se a imagem projectada no ecrã fosse uma “coisa” que pudéssemos tactear.
Os mais cínicos dirão que o espectador comum ignora e é indiferente a tudo isso. Talvez sim, mas não consta que esse espectador (que quer dizer “comum”?) seja detentor de uma razão universal. Até porque, se for essa a sua perspectiva, não sabe o que está a perder.