Hip Hop, orquestra e fumaça: o encontro entre Cypress Hill e Orquestra Sinfônica de Londres nos cinemas
As dependências do Royal Albert Hall estão acostumadas a receber não apenas concertos eruditos, mas trazer o hip hop para o ambiente clássico é algo mais raro

texto de Fabio Machado
A Universal Music Brasil escolheu o espaço Matilha Cultural, no centro de São Paulo, para promover a exibição de “Black Sunday – Live at the Royal Albert Hall” (2025), registro audiovisual da inusitada união entre o hip hop esfumaçado do Cypress Hill e a Orquestra Sinfônica de Londres (LSO em inglês) no mítico Royal Albert Hall, em Londres, como prévia do lançamento mundial do filme e do álbum, previsto para o dia 6 de junho.
O local da pré-estréia foi bem acertado, uma vez que o Matilha Cultural tem ligações estreitas com a cultura hip hop e com o audiovisual, contando com uma sala de cinema com 67 lugares (Cine Matilha) para exibir filmes e documentários fora do circuito comercial além de uma programação que abriga exposições, oficinas e apresentações musicais. Antes da sessão, era possível apreciar um pouco das artes presentes nas paredes do Matilha com trilha sonora a cargo do DJ Spanca como uma espécie de aperitivo para a atração principal: a parceria musical entre Cypress Hill e LSO.
Vale citar que tal encontro é mais uma prova da influência inescapável dos Simpsons, fato reconhecido pelo próprio vocalista B-Real no início da película ao agradecer aos responsáveis pela animação por juntar o Cypress Hill e uma orquestra em um episódio dos anos 90 (onde os rappers teriam solicitado uma orquestra por engano antes de um show). De certa forma, a participação no desenho também ajudou o grupo formado atualmente por B-Real, Sen Dog, Eric Bobo e DJ Lord a ter sua imagem consolidada na cultura pop, com uma carreira extensa onde já fizeram de tudo um pouco, até mesmo um NPR Tiny Desk. Faltava apenas concretizar a ideia “sugerida” por Homer, Marge, Bart e companhia décadas atrás.
As dependências do Royal Albert Hall estão acostumadas a receber não apenas concertos eruditos, mas também diversas apresentações de rock e pop (e às vezes uma mistura de ambos, a exemplo do Concerto for Group and Orchestra do Deep Purple e do próprio Cypress Hill com a LSO). Mas trazer o hip hop para o ambiente clássico é algo mais raro, o que faz essa união ainda mais curiosa. Aos olhos de um teatro lotado de fãs, os integrantes do grupo sobem ao palco vestidos de preto em meio a uma introdução da orquestra conduzida pelo maestro Troy Miller. Rapidamente os trabalhos são iniciados com “I Wanna Get High”, canção que abre o álbum “Black Sunday” (1993), que serve como base para a apresentação da noite.
A sequência de temas do disco segue com “I ain’t goin’ out like that” e a icônica “Insane in the Brain” – provavelmente o cartão de visitas do Cypress Hill em forma de música, que curiosamente não tinha sido pensada como single pelos músicos, mas acabou sendo lançada dessa forma pela gravadora (uma decisão acertada, haja visto que até no citado desenho dos Simpsons ela é tocada). Mas é preciso falar de como a orquestra confere profundidade às músicas, em contraponto aos tons mais descontraídos e lisérgicos dos temas originais. Em “I ain’t goin’ out like that”, por exemplo, as cordas fazem uma preparação sombria para a entrada dos demais músicos, enquanto nos versos o groove é reforçado pela percussão de Eric Bobo. No meio da música, percussão, orquestra e os scratches de DJ Lord colidem numa combinação impensável, mas que dá muito certo.
Não são só os instrumentistas da LSO que impressionam. A iluminação do Royal Albert Hall cria o clima apropriado para um registro desse porte, destacando os rappers e outros elementos da apresentação em momentos-chave. Em conjunto com os arranjos épicos executados pela orquestra, a impressão é que estamos assistindo a uma “versão IMAX” do Cypress Hill (ainda que a tela do Cine Matilha seja um pouquinho menor). Em meio a uma percussão com influência latina, intervenções espertas do DJ Lord e linhas de baixo funkeados providenciados pelo contrabaixista Christian Olde Wolbers – nome conhecido dos headbangers com passagens por grupos como Fear Factory e Vio-lence -, um show marcado pela pompa e virtuosismo se permite alguns momentos mais “relax”: em certo ponto, um garçom subiu e trouxe shots de (presumidamente) tequila para os integrantes.
E seguem mais canções de “Black Sunday”, como “Legalize it”, “Hits from the Bong” (com direito a um fã na plateia fazendo jus à temática principal do conjunto e acendendo um cigarro diferenciado enquanto fazia uma selfie) e “What Go Around Come Around, Kid” – essa, funk até a medula com um belo riff dos violinos. Já “A to the K” virou quase um hino épico, e não ficaria deslocada na trilha de um Game of Thrones. Entre os presentes na sessão de cinema, não era raro ver cabeças balançando em aprovação.
O show é entrecortado por comentários do grupo e da orquestra falando sobre essa junção de forças. B-real faz uma reflexão sobre a arte do sampling (elemento característico do hip hop que consiste em usar trechos instrumentais de canções existentes para criar bases e batidas), onde era possível pegar referências de vários estilos, até de álbuns de música clássica. Agora, ele nota que o que acontece é o reverso: a orquestra criando samples orgânicos para o hip hop (um conceito que já vem sendo utilizado ao vivo e no estúdio por músicos como Adrian Younge). Já para os membros da orquestra, esse intercâmbio é a iniciativa que pode ajudar a mudar a forma como a música erudita – por vezes considerada elitista e complexa – é vista pelo grande público.
Apesar do foco no supracitado “Black Sunday”, o grupo guardou na manga alguns outros hits da discografia, como “Dr. Greenthumb” (do disco “Cypress Hill IV”, aqui em roupagem cinematográfica), “Illusions” (de “Cypress Hill III: Temples of Boom”), “How I Could Just Kill a Man” )do primeiro álbum) e um encerramento grandioso com “(Rock) Superstar” do disco “Skull & Bones” – que com a adição da LSO, sintetiza perfeitamente os pontos fortes de cada uma das partes envolvidas nesse encontro: o hip hop banhado em malemolência, sagacidade e THC do Cypress Hill e a força expressiva de uma das orquestras sinfônicas mais tradicionais do planeta. Um registro memorável que mantém a sua força, mesmo através da tela do cinema.
– Fabio Machado é músico e jornalista (não necessariamente nessa ordem). Baixista na Falsos Conejos, Mevoi, Thrills & the Chase e outros projetos.