Dos diários da Ana Markl adolescente nasceu o novo livro da Ana Markl adulta
A autora reabriu diários antigos e resgatou os acontecimentos de que tão apaixonada ou amarguradamente falou quando tinha 15 anos. Com eles, escreveu 'Do Outro Lado do Tempo'.


Ana Markl cresceu nos anos 90. Foram tempos de escola, de amores e desamores, de inseguranças, de querer ir a festas e não poder, de bater com a porta do quarto depois de uma discussão com a mãe, de se sentir incompreendida. Mas também foram tempos de descoberta, de fazer amigos, de colar pósteres dos seus ídolos ou páginas recortadas de revistas com rapazes giros nas paredes, de chegar a casa e pôr a tocar no leitor de CDs os Smashing Pumpkins ou os Nirvana, de escrever nas páginas de um diário como tinha sido o dia ou como se sentia em relação à situação x ou y. Foram páginas e páginas de dezenas de diários, escritos ao longo de quase dez anos – que Ana Markl decidiu voltar a abrir para escrever Do Outro Lado do Tempo.
Bilhetes de metro, de cinema, coisas apanhadas do chão e diários, sobretudo diários. “Foram uma coisa que sempre transportei comigo. Tenho uma caixinha de memorabilia. E por mais que algumas coisas se tenham perdido ao longo do caminho, há umas quantas que são mesmo preciosidades”, conta Ana Markl, em conversa com a Time Out acerca do seu mais recente livro juvenil, baseado nos diários que escreveu entre os 14 e 17 anos. Do Outro Lado do Tempo chegou às livrarias no final de Maio e lê-se como uma conversa entre dois tempos – entre a juventude e o presente da autora.
“Aquela fase entre os 13 e 14 e os 17 e 18 anos é uma fase super rica. Agora que somos adultos parece-nos pouco tempo, mas na vida de um adolescente, é uma fase em que praticamente mudas de semana para semana – ou qualquer coisa acontece na tua vida, tens uma epifania qualquer, a tua banda favorita muda, ou muda o rapaz de quem gostas…” Daí o interesse de escrever um livro que mostrasse como esta fase da vida é mais do que dramas sem nexo ou apenas uma dor de cabeça para os pais, e que pode até explicar o porquê de sermos como somos hoje.
No caso de Ana, isso reflecte-se na síndrome de impostor que, apercebeu-se a autora com a releitura dos seus diários, sempre lá esteve. “As pessoas mais banais achavam que eu tinha a mania que era diferente e as pessoas que eu achava que eram diferentes e eram mais a minha tribo achavam que eu era demasiado banal. E isto vai muito ao encontro da síndrome de impostor que eu sempre senti”, diz. “Essa sensação de não estar à altura dos outros de alguma forma, de não me conseguir exprimir e sentir que estou sempre em esforço para convencer os outros de quem sou. Foi uma coisa que me acompanhou toda a vida.”
Ilustrada pela artista Christina Casnellie, com quem já tinha feito dupla em dois livros (Avó, Onde é que Estavas no 25 de Abril? e Onde Moram os Teus Macaquinhos?), a obra pinta-se de cor-de-rosa numas páginas e de branco noutras, dependendo de quem escreve – a Ana adolescente ou a Ana adulta. E apesar de não respeitarem a linha cronólogica real, os acontecimentos, neste caso momentos-chave da adolescência da autora, são ordenados numa sequência linear. O divórcio dos pais, o baile de finalistas, o primeiro beijo, as zangas com a mãe, as inseguranças e os medos que dão origem a reflexões actuais.
“Este livro claro que se baseia nos meus diários e os meus diários são de uma rapariga que cresceu nos anos 90, mas ao colocá-la em diálogo com o presente, acaba por falar dessas questões fundamentais. Tipo o que é que aconteceu depois? Como é que correu a tua vida? Como é que aquilo que tu foste se reflecte naquilo que tu és hoje? É quase uma forma de não só ir ao passado dizer à jovem Ana que está tudo bem, mas também dizer aos miúdos de hoje que vai ficar tudo bem.” Por isso, numa vontade de promover um maior diálogo entre pais e filhos, é um livro que não é só direccionado aos jovens de hoje, é também virado para os adultos. “É encontrar um equilíbrio de confiança e intimidade no sentido de estares à vontade para abrir o teu coração sobre os erros que cometeste. Acho que é muito fixe comunicar isso a um filho, porque assim ele percebe que és falível, que já te sentiste mal, que também te sentiste incompreendida”, acredita Ana Markl, que espera que o filho de cinco anos venha, um dia, a pegar neste livro e a dar “valor às suas crises de adolescência”.
Mas Ana Markl também sabe que a adolescência que se vive hoje, ou aquela que viverá o filho, não é a mesma que ela viveu antes da viragem do milénio. Os tempos são outros e com eles os estímulos, as ansiedades, as formas de expressão. Há, porém, aquilo que passa de geração em geração, como o sentimento de não pertença, e que por vezes nos faz parecer que tudo vai correr mal. Só que não é bem assim. “Se ao fim do dia, o meu filho estiver bem consigo, com as suas escolhas, tudo se vai encarreirar e, na idade adulta, vai dar o devido valor às suas características, às suas idiosincrasias”, remata.
De Ana Markl. Nuvem de Letras. 224 pp. 15,45€