Tecnognosticismo, Aceleracionismo e a elite tecnológica amoral no filme 'Mountainhead'

 A princípio, “Mountainhead” (2025), que estreia na HBO Max, é mais uma produção na onda atual de mostrar como os super-ricos podem ser tristemente ridículos. Em um mundo onde a inteligência artificial causa turbulência política e instabilidade internacional, com os cidadãos do planeta incapazes de distinguir a realidade, quatro bilionários magnatas da tecnologia responsáveis ​​pelo desastre se refugiam em um chalé isolado nas montanhas. Lá, discutem sobre seus próximos passos, com cada um dos bilionários tentando usar a instabilidade para encher os bolsos. Produções como “White Lotus”, “O Menu” e “Triângulo da Tristeza” parecem nos oferecer o prazer da catarse ao vermos extremamente ricos se darem mal de formas ridículas. Ao contrário, “Mountainhead” não há catarse: como fossem adolescentes amorais, são perigosamente motivados pelas distopias atuais que motivam o Vale do Silício: Tecnognosticismo e Aceleracionismo. “Pensamentos de pequenos garotos achando que poderão controlar o mundo, mas agora o mundo é o ciberespaço. O sonho de ser deus do ciberespaço – ideologia transformada em fantasia de garotos pré-adolescentes: uma regressão do sexo para uma forma autística de poder” (Arthur Kroker & Michael Weinstein, “Data Trash”)   Em meados dos anos 1990, os cientistas políticos Arthur Kroker e Michael Winstein descreveram de forma crítica o nascimento da chamada classe virtual, formada pela tecno-inteligência de cientistas da cognição, engenheiros, cientistas da computação, criadores de jogos eletrônicos e todo um conjunto de especialistas em comunicação. Para eles, essa variação histórica da elite burguesa era impulsionada não mais pela ética protestante (como na velha burguesia industrial) mas por um imaginário que denominavam como de “masculinidade pré-adolescente”. É a primeira geração dessa ciber-elite, a geração de Bill Gates e Steve Jobs, que ainda mascaravam esse imaginário com um discurso de relações públicas messiânico, como o discurso da “estrada do futuro” de Gates. Essa fachada mercadológica cai por terra com a segunda geração, iniciada pela figura emblemática de Mark Zuckenberg e a sua rede social Facebook - um jovem nerd de Havard que desconta sua ansiedade sociopática difamando pessoas em um blog enquanto tem uma ideia divertida, pelo seu ponto de vista: um jogo com as fotos de todas as moças da universidade para que as pessoas possam escolher qual a mais bonita. Assim nasceu o Facebook. Enquanto seus pares geracionais, Elon Musk e Jeff Bezos fazem questão de não esconderem sua impulsividade adolescente um brinca de apoiar golpes de Estado e apoiar o fascismo politicamente incorreto na sua rede social “X”; e o outro se diverte como astronauta com o foguete Blue Origin ou manda para órbita uma tripulação feminina em sensuais trajes espaciais que fariam inveja ao Capitão Kirk da série Star Trek- clique aqui. Agora essa elite virtual chegou a sua terceira geração. Uma elite geek dona de startups unicórnios (aquelas cujo valor especulativo chegou a um bilhão de dólares) inspirados em piratas cibernéticos como Julian Assange, Edward Snowden ou o coletivo hacker Anonymous. Ciber-segurança, back-doors, malwares e instruções algorítmicas executadas diretamente no processador, hackers, crackers e black hats, ciber ataques etc. passam a ocupar o vocábulo dessa nova geração. Com a Inteligência artificial e toda a geopolítica da ocupação das “terras raras” e construção de datacenters para acabar com a soberania digital dos Estados-Nação, eles alcançam o hackeamento final: a da própria realidade, impulsionados pelo imaginário do transhumanismo (a imortalidade de uma consciência digitalizada que habitaria a rede informacional) e aceleracionismo (a “destruição criativa” gerada pela aceleração caótica de processos sociais e tecnológicos). Chegando ao estado da arte dquilo que Kroker e Wistein anteviram no final do século passado: fantasias masculinas adolescentes que regrediriam a formas autísticas de poder. É sobre essa geração que trata a comédia dramática Mountainhead (2025), o mais recente projeto de sátira política de Jesse Armstrong, criador da aclamada série Succession , da HBO.  Assim como Succession , Mountainhead aborda temas como política, poder e capitalismo de frente, com cada um dos personagens sendo uma paródia dos bilionários da tecnologia do mundo real que influenciam. Mountainhead se passa em um mundo onde recentes avanços em inteligência artificial causaram turbulência política e instabilidade internacional, com os cidadãos do planeta incapazes de distinguir a realidade. Em meio ao caos, quatro bilionários magnatas da tecnologia responsáveis ​​pelo desastre se refugiam em um chalé isolado nas montanhas. Lá, eles discutem sobre seus próximos passos, com cada um dos bilionários tentando usar a instabilidade para encher os bolsos. Pela TV veem imagens do caos político e humanitário global, enquanto tudo o querem é um final de semana de “zoação”: pôquer e fast-food em uma espécie d

Jun 7, 2025 - 01:50
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Tecnognosticismo, Aceleracionismo e a elite tecnológica amoral no filme 'Mountainhead'

 


A princípio, “Mountainhead” (2025), que estreia na HBO Max, é mais uma produção na onda atual de mostrar como os super-ricos podem ser tristemente ridículos. Em um mundo onde a inteligência artificial causa turbulência política e instabilidade internacional, com os cidadãos do planeta incapazes de distinguir a realidade, quatro bilionários magnatas da tecnologia responsáveis ​​pelo desastre se refugiam em um chalé isolado nas montanhas. Lá, discutem sobre seus próximos passos, com cada um dos bilionários tentando usar a instabilidade para encher os bolsos. Produções como “White Lotus”, “O Menu” e “Triângulo da Tristeza” parecem nos oferecer o prazer da catarse ao vermos extremamente ricos se darem mal de formas ridículas. Ao contrário, “Mountainhead” não há catarse: como fossem adolescentes amorais, são perigosamente motivados pelas distopias atuais que motivam o Vale do Silício: Tecnognosticismo e Aceleracionismo.

“Pensamentos de pequenos garotos achando que poderão controlar o mundo,
mas agora o mundo é o ciberespaço. O sonho de ser deus do ciberespaço –
ideologia transformada em fantasia de garotos pré-adolescentes:
uma regressão do sexo para uma forma autística de poder”

(Arthur Kroker & Michael Weinstein, “Data Trash”)

 

Em meados dos anos 1990, os cientistas políticos Arthur Kroker e Michael Winstein descreveram de forma crítica o nascimento da chamada classe virtual, formada pela tecno-inteligência de cientistas da cognição, engenheiros, cientistas da computação, criadores de jogos eletrônicos e todo um conjunto de especialistas em comunicação.

Para eles, essa variação histórica da elite burguesa era impulsionada não mais pela ética protestante (como na velha burguesia industrial) mas por um imaginário que denominavam como de “masculinidade pré-adolescente”. É a primeira geração dessa ciber-elite, a geração de Bill Gates e Steve Jobs, que ainda mascaravam esse imaginário com um discurso de relações públicas messiânico, como o discurso da “estrada do futuro” de Gates.

Essa fachada mercadológica cai por terra com a segunda geração, iniciada pela figura emblemática de Mark Zuckenberg e a sua rede social Facebook - um jovem nerd de Havard que desconta sua ansiedade sociopática difamando pessoas em um blog enquanto tem uma ideia divertida, pelo seu ponto de vista: um jogo com as fotos de todas as moças da universidade para que as pessoas possam escolher qual a mais bonita. Assim nasceu o Facebook.

Enquanto seus pares geracionais, Elon Musk e Jeff Bezos fazem questão de não esconderem sua impulsividade adolescente um brinca de apoiar golpes de Estado e apoiar o fascismo politicamente incorreto na sua rede social “X”; e o outro se diverte como astronauta com o foguete Blue Origin ou manda para órbita uma tripulação feminina em sensuais trajes espaciais que fariam inveja ao Capitão Kirk da série Star Trek- clique aqui.

Agora essa elite virtual chegou a sua terceira geração. Uma elite geek dona de startups unicórnios (aquelas cujo valor especulativo chegou a um bilhão de dólares) inspirados em piratas cibernéticos como Julian Assange, Edward Snowden ou o coletivo hacker Anonymous. Ciber-segurança, back-doors, malwares e instruções algorítmicas executadas diretamente no processador, hackers, crackers e black hats, ciber ataques etc. passam a ocupar o vocábulo dessa nova geração.



Com a Inteligência artificial e toda a geopolítica da ocupação das “terras raras” e construção de datacenters para acabar com a soberania digital dos Estados-Nação, eles alcançam o hackeamento final: a da própria realidade, impulsionados pelo imaginário do transhumanismo (a imortalidade de uma consciência digitalizada que habitaria a rede informacional) e aceleracionismo (a “destruição criativa” gerada pela aceleração caótica de processos sociais e tecnológicos). Chegando ao estado da arte dquilo que Kroker e Wistein anteviram no final do século passado: fantasias masculinas adolescentes que regrediriam a formas autísticas de poder.

É sobre essa geração que trata a comédia dramática Mountainhead (2025), o mais recente projeto de sátira política de Jesse Armstrong, criador da aclamada série Succession , da HBO.  Assim como Succession , Mountainhead aborda temas como política, poder e capitalismo de frente, com cada um dos personagens sendo uma paródia dos bilionários da tecnologia do mundo real que influenciam.

Mountainhead se passa em um mundo onde recentes avanços em inteligência artificial causaram turbulência política e instabilidade internacional, com os cidadãos do planeta incapazes de distinguir a realidade. Em meio ao caos, quatro bilionários magnatas da tecnologia responsáveis ​​pelo desastre se refugiam em um chalé isolado nas montanhas. Lá, eles discutem sobre seus próximos passos, com cada um dos bilionários tentando usar a instabilidade para encher os bolsos. Pela TV veem imagens do caos político e humanitário global, enquanto tudo o querem é um final de semana de “zoação”: pôquer e fast-food em uma espécie de clube do Bolinha. Enquanto decidem o destino do planeta.

O filme é uma crítica certeira à megalomania de se autopromover que agora aflige os membros dessa oligarquia tecnológica. O problema, que também eles controlam as alavancas do mundo.

Uma pitada de tudo: megalomania autopromocional, amoralidade adolescente, o sonho da imortalidade, hackeamento da realidade pela IA transformando o caos em “zoação” e a ideologia do aceleracionismo para racionalizar a catástrofe que assistem nas telas dos seus smartphones.



“Uma cabeça explode desse jeito? Isso só pode ser IA”, comenta em tom de piada um vídeo da CNN mostrando mais um sangrento conflito nas ruas de algum lugar no Oriente Médio. Essa é uma pequena amostra das cínicas linha de diálogo de Montainhead.

O Filme

Os quatro homens em Mountainhead se apelidaram de Brewsters e se reúnem há tempo suficiente para que suas noites de pôquer tenham construído uma tradição séria. As regras são: sem falar em negócios (embora tudo o que eles parecem falar seja sobre negócios), sem refeições (a equipe de cozinheiros foi mandada embora e eles se viram apenas com junk food) e sem saltos altos (presumivelmente referindo-se à ausência de mulheres, embora a vida pessoal de cada um desses caras também esteja em ruínas).

Há apelidos - Jason Schwartzman, cujo personagem bajulador Hugo vale apenas US$ 521 milhões, é "Soup Kitchen", ou "Soupes" para abreviar, enquanto Randall (Steve Carell), o membro sênior e eminência parda, é "Papa Bear".

Nesse Clube do Bolinha há uma tradição de homens escreverem com batom o valor de seus patrimônios líquidos no peito e depois serem coroados com um diadema, um chapéu de capitão e um quepe de marinheiro com base em suas classificações. Venis (Cory Michael Smith) é o atual campeão, com US$ 220 bilhões — um sociopata sorridente cuja empresa de mídia social, Traam, acaba de lançar um conjunto de ferramentas de conteúdo que permitem deepfakes, cujos efeitos desestabilizadores sobre governos mundiais são transmitidos por meio de alertas nos celulares cada vez mais alarmantes.



Em terceiro lugar, mas subindo rapidamente, está Jeff (Ramy Youssef), cuja empresa de IA está recebendo um grande impulso com os desastres causados ​​pela última atualização da Traam.

 Sua IA BILTER tem a capacidade de filtrar a inteligência artificial de Venis e torná-la muito mais segura. Por isso, Venis está ansioso para fechar um acordo comercial com ele. No entanto, Jeff age pelas costas de Venis e diz a Randall (o segundo colocado) que eles deveriam ir ao Conselho da Diretoria da Traam para tirar Venis da presidência. Jeff também planeja levar sua IA ao governo dos Estados Unidos, permitindo que eles regulem a IA de Venis, parem com a campanha de desinformação e corrijam a instabilidade no mercado.

Esse é o foco de tensão criada dentro do grupo, diante do cenário distante do mundo em caos nas telas de TV e smartphones no chalé remoto em que estão. Randall tem câncer e não leva a sério os prognósticos dos médicos: “Como pode? Fazemos tantas coisas e não conseguimos consertar uma cartilagenzinha!”. Ele se recusa a aceitar que seu câncer é terminal.

Portanto, vê no impulsivo Venis a realização da esperança transhumanista e aceleracionista para daqui a cinco anos – a possibilidade de um upload final que salve sua consciência digitalizada na rede, tornando imortal. A concretização do sonho tecnognóstico e transhumanista à base de uma IA treinada com dados que estão provocando o caos político – este é um dos princípios aceleracionistas: as mudanças rápidas podem até custar muitas vidas hoje. Mas amanhã, muito mais vidas humanas serão salvas. Principalmente, as vidas das mentes valiosas da elite tecnológica.



Randall não é fã do plano de Jeff – chocado, ele acha que Jeff é um “traidor desacelaracionista”. Imediatamente vai até Hugo e Venis e conta a eles o plano de Jeff, afirmando que precisam impedi-lo de fazer isso. Eventualmente, o trio conclui que matar Jeff é a única opção. Eles racionalizam isso para si mesmos, dizendo que, de uma perspectiva utilitária, matar Jeff hipoteticamente salvaria vidas no futuro, cuja IA de Venis melhoraria. Assim, a segunda metade do filme acompanha Randall, Hugo e Venis enquanto eles tentam matar Jeff de diversas maneiras cômicas.

Nas densas linhas de diálogo (com acenos a insípidas tentativas de filosofia moral baseada em Marco Aurélio, Kant e Nietzsche) há poucos vislumbres de humanidade, revelando um tipo de distópico isolamento do Vale do Silício – a ideia de que qualquer coisa que façam a curto prazo é permitida porque tudo levará à salvação da humanidade.

Uma espécie de irresponsabilidade feliz: autopromoção mercadológica, aumentar o patrimônio líquido sem qualquer regulamentação pública e salvar a humanidade são ideias que convivem entre si tranquilamente nas cabeças bilionárias deles. Afinal, só os muito ricos teriam os meios para perpetuar a raça humana.

Moutainhead é uma comédia dramática que difere da onda atual de produções como Succession, Triangle of Sadness , The White Lotus e The Menu. Todas são comédias que nos asseguram que a elite é miserável, quer recebam o que merecem ou não; elas também nos permitem desfrutar de experiências de segunda mão dos luxos em que se deleitam e das maneiras horríveis com tratam subalternos. De certa forma, essas comédias criam em nós um efeito catártico, como se nós devorássemos os muito ricos – aqueles 1% de privilegiados do planeta.

Ao contrário, Mountainhead nos convida para esse chalé exclusivo num retiro gelado das montanhas apenas para que acompanhemos a face externa emocional desses personagens que, caso destruam a sociedade, simplesmente se refugiam em seus respectivos bunkers, garantindo a si mesmos que tudo vai dar certo no final.

"Nada é tão sério assim — nada significa nada, e tudo é engraçado e legal", dispara Venis em certo momento, a filosofia norteadora de alguém rico o suficiente para acreditar nisso.

Em Mountainhead são os ricos que nos devoram, e não há catarse nisso.


 

  Ficha Técnica

Título:  Mountainhead

Diretor: Jesse Armstrong

Roteiro: Jesse Armstrong

 Elenco: Steve Carell,  Jason Schwartzman, Cory Michael Smith, Ramy Youssef

Produção: HBO Films, Hot Seat Productions

Distribuição: HBO Max

Ano: 2025

País: EUA

 

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