Crítica: “O Ensaio” é a série que você precisa ver agora
Qualquer tentativa de descrever “O Ensaio”, seja como obra em si ou como uma experiência televisiva imersiva, se mostra fatalmente aquém de condensar o nível do trabalho exercido aqui

texto de Davi Caro
É inevitável se deparar com adjetivos como “brilhante”, “desafiador”, “genial”, “perturbador” ou “revolucionário” em uma simples busca por resenhas e críticas de “O Ensaio”, série idealizada pelo roteirista, comediante e “protagonista” canadense Nathan Fielder, e cuja segunda temporada foi concluída via HBO Max ao fim deste Maio último. O mais chocante, no entanto, é o quão difícil pode ser a tarefa de explicar (ou mesmo descrever) a produção sem acabar caindo na armadilha da hipérbole. Mero hype ou uma obra que levará anos para ser totalmente compreendida? A validação de um gênio ou a exaltação de um mero excêntrico? Real ou ficção? Impulsos megalomaníacos vazios ou genuínas buscas por respostas para perguntas que a maior parte de nós nem mesmo conhece?
A primeira verdade a ser ressaltada é que “O Ensaio” é, de fato, muito diferente de praticamente tudo que se viu, em se tratando de entretenimento de massa, nos últimos anos. O segundo fato a ser notado tem a ver com a vitória heróica contra a improbabilidade que a série, e seu criador, podem finalmente se gabar de terem alcançado: Nathan Fielder comentou anteriormente sobre como elaborou o conceito de seu projeto enquanto atuava como a figura no centro de “Nathan For You”, série na qual uma versão ficcionalizada de si mesmo se apresentava como um criativo, embora desajustado “solucionador de problemas” para empreendedores que se deparassem com percalços. Colocando em prática soluções estapafúrdias, e muitas vezes inverossímeis, para problemas mundanos, Fielder instigava seus espectadores ao riso ao mesmo tempo em que revelava muito pouco (ou quase nada) sobre si mesmo. Após quatro temporadas (todas disponíveis via Paramount+ no Brasil), “Nathan For You” foi encerrada, justamente no momento em que a narrativa desempenhada por Fielder passava a se tornar menos cômica, e mais reflexiva – mais real, alguém poderia dizer.
Em contrapartida, “O Ensaio” é, acima de qualquer coisa, um projeto onde o que é real e o que é imaginário são meras variáveis, hipóteses que se provam irrelevantes frente a uma proposta um pouco mais inovadora. Quando a primeira temporada chegou ao público em 2022, o que poderia ser apenas uma simples sequência espiritual para um projeto bem-sucedido se provou muito mais ambicioso, mais profundo e, por que não, mais pessoal: borrando a ficcionalização de sua própria persona, Nathan atua como um manipulador observador passivo, auxiliando pessoas a se prepararem para atividades totalmente corriqueiras, meticulosamente simulando situações de interação social por meio de grandes sets, figurinos, e roteiros exaustivamente detalhados. Além de estabelecer contato com indivíduos de personalidades completamente diferentes e fazê-los confrontarem situações de extrema ansiedade social, a primeira temporada também trazia uma trama paralela com Fielder nos holofotes, onde a realidade de seu próprio desajuste era desafiada ao extremo. Intercalando a representação de situações relativamente simples e a recriação de eventos extremamente complexos, o grande acerto da produção é evidenciar as dificuldades enfrentadas por muitos (ou por todos) ao mesmo tempo em que consegue atravessar um pretenso véu de melancolia e esterilidade e evocar um tipo muito sutil, e particular, de humor.
Se já era difícil, porém, definir a primeira temporada de “O Ensaio” como uma produção de comédia – a exemplo de “Nathan For You”, ou de “The Curse”, série de 2023 na qual Fielder interpreta um personagem (este sim, totalmente ficcional) e contracena com a co-protagonista Emma Stone – a segunda temporada vai além: optando por um arco narrativo unificado e deixando de lado a natureza mais episódica de seus projetos anteriores, o idealizador expande as virtudes da série em direção a um tipo de história que desafia, e descarta, generalizações. Sem ser 100% documental, esta nova leva mostra Fielder lidando com desastres da aviação, e o que ele acredita ser a principal causa de boa parte dos acidentes deste tipo: a pouca ou nenhuma comunicação interpessoal entre aqueles responsáveis por manter a aeronave no ar, e os passageiros seguros. Trabalhando tanto com pilotos treinados quanto com intérpretes, costurando situações roteirizadas e fazendo uso de um verdadeiro arsenal de recursos materiais – que vão de um simulador de cockpit em tamanho real até a recriação de um ambiente de aeroporto, rigorosamente detalhado – Nathan poucas vezes faz incursões para fora de seu objetivo (salvo por um episódio onde faz referência, de forma naturalmente irônica, à remoção de um dos episódios de “Nathan For You” pela Paramount+, em um comentário direto demais para ser considerado metalinguístico). Se debruçando sobre os muitos aspectos da vida pessoal e profissional de pilotos, utilizando métodos aparentemente insólitos para testar as capacidades responsivas e opinativas de indivíduos – ao ponto de criar um show de talentos completo, onde condutores aéreos profissionais serviriam como jurados – o idealizador cria um amálgama do personagem frio e desconectado que interpreta, e, ao mostrar muitos dos dilemas pelos quais pilotos passam, surpreende ao revelar mais sobre si.
De fato, se uma palavra é capaz de resumir a segunda temporada de “O Ensaio”, esta palavra é “entrega”. Distante de se utilizar de um tópico obviamente delicado para fins de comédia, e se embasando em eventos reais para chamar a atenção em direção a pontos que muitos jamais considerariam, Fielder recorre a especialistas, e, através de simulações de audiências oficiais com autoridades governamentais, transparece a seriedade com a qual se aproxima desta questão. Uma de suas primeiras e maiores referências, a do “Milagre do Hudson” – no qual o capitão Sully Sullenberger aterrisou um Airbus nas águas próximas a Manhattan, com todos os mais de 150 passageiros em segurança, após um defeito nas turbinas devido ao impacto com pássaros (em uma história adaptada para o cinema por Clint Eastwood em 2006) – permeia a temporada inteira, e a natureza heroica do acontecimento conduzido pelo piloto se mostra ir muito além de mero interesse profissional para Fielder. Com o núcleo cômico da série centrado em sua excêntrica personalidade, Nathan burla a atenção do espectador, conduzindo-o em meio a cada vez mais intrigantes e impressionantes simulações para, em um episódio conclusivo que merece ser lembrado como um dos mais acachapantes dos últimos anos, revelar um lado de suas intenções que havia permanecido oculto para os espectadores até então.
A verdade é que qualquer tentativa de descrever “O Ensaio”, seja como obra em si ou como uma experiência televisiva imersiva, se mostra fatalmente aquém de condensar o nível do trabalho exercido aqui. Indo além de simplesmente superar seus trabalhos anteriores, Nathan Fielder expandiu as barreiras do realismo com uma primeira temporada repleta de reflexões. Agora, com um enredo e objetivos novos, qualquer linha imaginária que separe a ficção da realidade perde completamente a relevância – enquanto sua ávida audiência é levada a contemplar a obstinação de uma figura central que instiga e perturba com franqueza e transparência desconcertantes. Muito vêm se falando sobre “O Ensaio”, e muito ainda vai ser dito. Para muito além disso, trata-se de algo que precisa ser visto, e refletido. É a série que você precisa ver hoje, mesmo que ainda não saiba.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia mais textos dele aqui.