Esse você precisa ouvir: Os 30 Anos de “Ball-Hog Or Tugboat?”, estreia solo de Mike Watt

Muito mais do que um trabalho que se escorava em credenciais antigas dentro do universo alternativo, o álbum é evidência do espírito aventureiro que sempre guiou, e segue guiando, Mike Watt.

May 24, 2025 - 04:55
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Esse você precisa ouvir: Os 30 Anos de “Ball-Hog Or Tugboat?”, estreia solo de Mike Watt

texto de Davi Caro

A narrativa da ascensão da música alternativa do início dos anos 1990 já é uma história tantas vezes narrada que, colocada em perspectiva, muitas de suas idiossincrassias podem passar despercebidas. O estouro e derrocada do grunge de Seattle, seguido pela ascendência moderno-revisionista do britpop são, afinal, as duas pilastras sobre as quais é suspenso o mítico momento no qual “mainstream” passou a ser um conceito de menos importância. E foi exatamente entre estas duas apoteoses, em 1994, que um músico americano, respeitado em meio ao underground graças aos bons serviços prestados em não uma, mas duas lendárias bandas, elencou alguns de seus principais tributários para a estreia solo de uma carreira que, então, já somava mais de uma década; e, no processo, colocou de vez em cheque a importância – e a relevância, por que não – desse tal “mainstream”.

Qualquer um dos grandes nomes da cena americana, em meio àqueles a serem alçados ao estrelato pós-1991, certamente ouviria o nome de Mike Watt com o tipo de reverência destinado a poucos. O baixista nascido na Virginia já possuía um currículo extenso que listava mitológicos discos lançados como membro do trio Minutemen (que encerrou suas atividades em 1985, não sem antes lançar o petardo “Double Nickels on the Dime” um ano antes), e também como um terço do grupo Firehose (ativo até 1994). Embora também figurasse como metade do Dos – projeto que tinha com a então esposa, a também baixista e ex-membro do Black Flag, Kira Roessler – Watt ainda não havia feito qualquer menção à ideia de se lançar como artista solo. O divórcio do casal, que aconteceu no mesmo ano, e que não interrompeu a trajetória musical da dupla, foi apenas um dos muitos fatores que motivaram o baixista a dar seus primeiros passos musicais sob seu próprio nome. E, na falta de uma banda fixa, Watt convocaria amigos e colegas (muitos deles mais novos, muitos deles muito bem-sucedidos) para acompanhá-lo em 17 canções, majoritariamente compostas pelo próprio baixista.

Olhar os créditos do disco resultante, que seria lançado como “Ball-Hog Or Tugboat?” pela gravadora Columbia em fevereiro de 1995, é como contemplar um detalhado mapa do que então se conhecia como “rock alternativo”, com ênfase na segunda palavra, e conta com muitos dos nomes que se transformaram em baluartes de sua época: dois terços do Nirvana, dos Beastie Boys e dos Meat Puppets, três quartos do Sonic Youth, e metade dos Screaming Trees foram unidos a membros de Pearl Jam, Pixies, Dinosaur Jr., Red Hot Chili Peppers, Soul Asylum, Germs e Bikini Kill, entre vários outros, a fim de registrar as faixas que representariam uma espécie de renascimento para Watt. Três décadas depois de seu lançamento, “Ball-Hog Or Tugboat?” impressiona não apenas por sua qualidade, senão também por sua bela e inspiradora estranheza, pervasiva desde a instigante arte de capa.

Tal estranheza, no entanto, intercala suas aparições com canções que, embora não se distanciem tanto do que pipocava nas rádios àquela época, são permeadas de um tipo de personalidade irreverente que só poderia ser conjurado por alguém totalmente ciente das próprias virtudes – algo que Mike Watt demonstra saber desde o primeiro minuto, com a potente “Big Train”. Curt Kirkwood (Meat Puppets) reveza solos de guitarra explosivos com J Mascis, enquanto o irmão daquele, Cris, adiciona um insuspeito banjo na mixagem junto com o slide de Nels Cline – tudo cuidadosamente embalado com backing vocals de Eddie Vedder e uma eletrizante performance de Dave Grohl na bateria. E, é claro, o rechonchudo baixo de Watt, que também assume os vocais principais aqui (em uma das duas únicas instâncias onde o artista principal toma o microfone, pasme).

Vedder e Grohl, aliás, aparecem também no grande clássico que é a segunda faixa do disco, “Against the 70’s”. Com o vocalista do Pearl Jam nas vozes, e também com o aporte de Krist Novoselic no órgão Farfisa. Também mais direta é “Piss-Bottle Man”, com os holofotes em Evan Dando (Lemonheads) e também com a participação de Zander Schloss (Circle Jerks) na guitarra e das irmãs Petra e Rachel Haden adicionando backing vocals junto à colega do that dog., Anna Waronker. Já a empolgante “Sexual Military Dynamics” traz a contribuição de Henry Rollins, ao mesmo tempo em que “Tell ‘Em Boy” (com Dave Pirner, do Soul Asylum, ao microfone) é um dos tesouros escondidos do disco, com o jazzista John Molo dando um show na bateria.

Mike Watt reclama para si as atenções com suas linhas de quatro cordas em “Maggot Brain”, uma quase balada instrumental que tem dissonantes guitarras de J Mascis sobre os teclados climáticos de Bernie Worrell (colaborador do Parliament-Funkadelic e dos Talking Heads). Ainda mais surpreendente é a semi-country “Chinese Firedrill”, onde Black Francis mostra um tipo de sutileza poucas vezes visto nas canções dos Pixies. E “Max and Wells”, com sua letra declamada pelo saudoso Mark Lanegan (no que poderia soar como um tributo a Lou Reed) é um dos momentos chaves do repertório, quase como uma ponte para a parcela mais experimental das canções.

No quesito experimentalismo, pouco supera a viagem que é a dobradinha “E-Ticket Ride” e “Forever – One Reporter’s Opinion”. A segunda traz o retorno de Nels Cline, assim como a presença de Pat Smear. Ao mesmo tempo em que o guitarrista dos Germs se limita a uma participação discreta nos vocais, o futuro guitarrista do Wilco faz valer sua chance de mostrar seus dotes instrumentais. Já a primeira é o mais divertido e maluco momento do álbum, com Flea no contrabaixo ao mesmo tempo em que as percussões são divididas entre John Molo e Stephen Perkins (Jane’s Addiction e Porno For Pyros), todos fazendo a base para Mike D, dos Beastie Boys nas vozes (que são “compartilhadas” com o choro da então infante Coco Hayley Gordon Moore). Seu pai, Thurston Moore, também é um colaborador de Watt, junto aos colegas de Sonic Youth Lee Ranaldo e Steve Shelley (que divide as baterias com J Mascis), e Carla Bozulich em “Tuff Gnarl”. E o casal Kathleen Hanna e Adam Horowitz também marca presença, ela tocando spiel e aparecendo como uma gravação de uma secretária eletrônica em “Heartbeat”, e ele gravando guitarras e vocais (compartilhados com Watt) na maluca “Coincidence is Either Hit or Miss”, com uma discreta aparição também do produtor brasileiro dos Beasties, Mario Caldato.

Mais do que equilibrar estes dois lados tão distintos – a esquisitice irônica e a visceralidade magmática – o grande acerto de Mike Watt em seu próprio disco está em seu papel como mestre de cerimônias do próprio cartão de visitas: ao ceder a posição de vocalista para seus ilustres convidados, o músico coloca em evidência a própria relevância para estes mesmos artistas, tamanho o nível de entrega demonstrado por cada um. Watt, na verdade, consegue ir ainda mais além – sua influência acaba despertando o que há de mais excêntrico na sonoridade de seus co-conspiradores, tirando-os de previsíveis zonas de conforto e os recolocando em um circo colaborativo de canções desafiadoras, ensurdecedoras e intrigantes. Esta mesma influência, é verdade, não significou uma recepção esfuziante de todas as partes (a NME, na época imersa no fervor da Cool Britannia, foi impiedosa em classificar o álbum com um 3/10) mas pesou o suficiente em favor do álbum para poder apresentar Watt para uma nova geração de ouvintes.

Eddie Vedder, Dave Grohl e Mike Matt

Outro elemento que se provou decisivo para o apelo do disco foi a turnê que se deu após o lançamento: ainda sem membros fixos para sua banda, Watt foi convocado por Dave Grohl e Eddie Vedder, que ligaram para ele dizendo que seriam a sua banda na estrada como baterista e guitarrista/vocalista, respectivamente. Em meio a um recesso com o Pearl Jam, o segundo contrapopôs que, além de participar como membro de apoio, também tocaria com seu projeto paralelo, Hovercraft, como banda de abertura. Acontece que o primeiro, que já planejava sua primeira turnê com o Foo Fighters, também ofereceu a mesma proposta. Assim, a “Ring Spiel Tour ‘95” contava com uma banda rotativa que também incluía os Foos Pat Smear (guitarra) e William Goldsmith (bateria), em um show que percorreu os EUA no primeiro semestre de 1995 e que contava com boa parte do repertório do disco novo, além de músicas do Firehose e algumas covers – em 2016, uma gravação de um show no The Metro de Chicago foi lançada oficialmente com o mesmo nome da turnê, e incluiu versões para canções de Blue Oyster Cult, Daniel Johnston e Madonna (!). A banda que acompanhou Watt pelo restante da divulgação, batizada The Crew of The Flying Saucer, também é digna de nota, tendo trazido dois bateristas e também o já citado Nels Cline.

Em uma antológica entrevista para Leonardo Tissot publicada no Scream & Yell no ano em que o disco completaria 25 anos de lançamento, Mike Watt rememorava: “Lembro bastante dessa época. Quando penso nesse disco, realmente foi como uma mudança de ares na minha vida. Antes desse álbum, basicamente eu fui membro dos Minutemen e do fIREHOSE. Então, fui fazer esse disco — que é bem curioso que seja chamado de “disco solo”, já que tem 48 pessoas tocando nele… Tem 17 músicas e 17 bandas diferentes ali. (…) Comecei a pensar no ‘Ball-Hog or Tugboat?’ e na ideia de um baixista ser o cara que conhece todas as músicas e aí ter outras pessoas participando. (…) Eu não sabia quem estaria disponível. Praticamente não ensaiamos, foi tudo feito muito espontaneamente no estúdio. Eu tinha algumas músicas e pensei: se o baixista sabe tocá-las, qualquer um pode vir e tocar guitarra, bateria ou cantar. Então eu mostrei as músicas para cada um deles na hora, já no estúdio”, relembra Watt.

Três décadas depois, “Ball-Hog Or Tugboat?” é um disco cuja proposta ainda provoca muitos pontos de interrogação, tais como o do título, em meio a audiências. Muito mais do que um trabalho que se escorava em credenciais antigas dentro do universo alternativo, o álbum é evidência do espírito aventureiro que sempre guiou, e segue guiando, os trabalhos de Mike Watt. Além de lançar outros álbuns solo desde então – o último tendo chego ao público em 2011 – o baixista vêm se mantendo ocupado com sua banda atual, the Secondmen, além de ter integrado a formação final dos Stooges (com quem gravou o derradeiro “Ready to Die” em 2013). Talvez os dias atuais sejam o momento apropriado para reavaliar o primeiro disco de Watt com perspectiva suficiente: em dias onde tanto em meio ao “alternativo” se preocupa em reciclar ditames calcificados que remetem a uma era que pregava justamente o oposto, o frescor de “Ball-Hog Or Tugboat?” questiona qualquer rótulo datado que, ao final (para citar um dos grandes momentos do disco), possa representar “só o sentimentalismo de alguma outra pessoa”.

Entrevista: Mike Watt fala de seu álbum solo clássico, “Ball-Hog or Tugboat?”

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia mais textos dele aqui.