Carcass revisita a discografia e faz intensivão de metal extremo em São Paulo

Pela variedade de discos e eras, não é exagero dizer que um show do Carcass é um intensivão de metal extremo, já que a discografia do grupo é algo que se confunde com os primórdios do grindcore e death metal inglês.

May 18, 2025 - 13:00
 0
Carcass revisita a discografia e faz intensivão de metal extremo em São Paulo

texto de Fabio Machado
fotos de Douglas Mosh

A última vez que o Carcass esteve no Brasil foi como parte do line-up do Summer Breeze 2024 (atual Bangers Open Air), a situação não era muito auspiciosa: além do tempo mais limitado para se apresentar, o show rolou sob um sol implacável. O vocalista/baixista Jeff Walker sentiu bastante o golpe, a ponto de tocar parte do set com um saco de gelo na cabeça para aliviar a temperatura. Foi um show pesado e executado com a qualidade característica da banda, mas era inevitável pensar que, em circunstâncias melhores, o poder de fogo desse quarteto de Liverpool (não confundir com outros similares), considerado uma das instituições do metal extremo, seria ainda mais implacável. Pois em 2025 a oportunidade veio, com um show agendado do Carioca Club sem festival, sem bandas de abertura, e o mais importante: sob condições mais amenas de temperatura para evitar mais gente passando mal de calor enquanto berra sobre procedimentos médicos obscuros.

Às 20h, a pista do Carioca estava longe de estar lotada, mas já havia um pequeno grupo mais entusiasmado posicionado lá na frente do palco. Boa parte do público ainda estava confraternizando do lado de fora nos bares do entorno, como é tradicional do estilo. Nos telões, a já clássica imagem de stand-by do “Carcass TV” que aparece antes dos shows, enquanto o som do PA deixava rolar uma playlist com as melhores do AC/DC (sim, não só de blastbeat e gutural vive o homem). Ainda passariam mais 30 minutos até que as luzes do Carioca se apagassem e a intro com uma versão ligeiramente mais sinistra de “1985” soasse como prenúncio para o que estava por vir, enquanto os integrantes chegavam a seus postos: Daniel Wildling (bateria), Bill Steer (guitarra), James Blackford (guitarra) e o já citado Jeff Walker, agora ostentando um corte de cabelo mais curto.

A essa altura a pista já estava cheia e na ansiedade pelo início do show, que começou com a devida brutalidade com “Unfit for Human Consumption” seguida por “Buried Dreams” – destaques dos álbuns “Surgical Steel” e “Heartwork”, respectivamente – sob aprovação total dos presentes na pista. Sem tempo a perder, emendaram “Kelly´s Meat Emporium” do mais recente “Torn Arteries”; e “Incarnated Solvent Abuse” do seminal “Necroticism: Descanting the Insalubrious” para alegria de quem estava pirando nas rodas lá pelo meio da pista. E diferente do ano passado, as circunstâncias estavam do lado do Carcass: jogando para a torcida, num ambiente mais intimista que um palco de festival e com uma qualidade sonora que facilitava a compreensão de cada riff, solo e virada de bateria executados na noite (e não foram poucos).

A saraivada de clássicos continuou, agora com a cadenciada “No Love Lost”, outra do “Heartwork” com refrão berrado em uníssono por quem lá estava, e que provavelmente foi a porta de entrada de muita gente para a banda britânica ao se deparar com clipes no saudoso Fúria MTV nos anos 1990. A noite também reservou alguns medleys, elemento já tradicional no set dos britânicos: um com “Tomorrow Belongs to Nobody” (do disco “Swansong”) e “Death Certificate” (mais uma do “Heartwork”), essa última com grandes momentos em dueto nas guitarras de Steer e Blackford; e outro com “Black Star/Keep on Rotting in the Free World”, mais duas do “Swansong”, um disco meio injustiçado na década de 90 por se afastar das raízes mais death do conjunto, mas que agora parece estar sendo redescoberto de forma positiva por uma nova geração, uma vez que é presença constante nos shows.

Por essa variedade de discos e eras, não é exagero dizer que um show do Carcass é praticamente um intensivão de metal extremo, já que a discografia do grupo é algo que se confunde com os primórdios do grindcore e death metal inglês e que vai agregando outros elementos à sua sonoridade. Haja visto a sequência com “Genital Grinder” e “Pyosisified (Rotten to the Gore), trazidas diretamente do primeiro disco “Reek of Putrefaction” e que aqueceram o coração dos fãs mais old school com uma massa sonora avassaladora. Sem falar na tempestade grind de “Tools of the Trade” (do mesmo EP de 1992), que contribuiu para animar mais ainda o circle pit no local.

Depois dessa pequena viagem no tempo, o Carcass retoma a era moderna trazendo “The Scythe’s Remorseless Swing” (de “Torn Arteries”) um épico de 5 minutos quase melódico perto das desgraceiras anteriores, mas também repleto de riffs, mudanças de andamento e vocais ríspidos. E assim seguiu com “316L Grade Surgical Steel” (mais uma do “Surgical Steel”), outra que tem de tudo um pouco: melodias dobradas de guitarra, bateria que vai do rápido ao bumbo duplo moendo, e grandes solos de Bill Steer – que aqui, merece uma menção à parte por parecer a pessoa menos death metal num rolê repleto de camisetas pretas, pulando e sorrindo pelo palco com calça jeans boca de sino e uma Gibson que não o deixariam de fora em nenhum festival dos anos 70. O contraponto desse visual é a sua capacidade de compor riffs com precisão extrema que são a alma da banda.

Também merece elogios o batera Daniel Wildling, que mesmo diante da tarefa absurda que é performar uma discografia que vai de 0 a 150 em segundos, consegue realizá-la com maestria e um literal sorriso no rosto quase todo o tempo, mesmo em meio a blast beats insanos. Essa potência sonora se manteve no final, com mais duas favoritas dos fãs: “This Mortal Coil” (de “Heartwork”) e “Corporal Jigsore Quandary” (de Necroticism: Descanting the Insalubrious”). A essa altura, Jeff Walker e os demais integrantes poderiam se dar por satisfeitos e arrumarem suas coisas para sair diante do arsenal de alto calibre apresentado na noite. Mas ainda havia tempo para mais uma dobradinha no bis, com o groove arrastado de “Ruptured in Purulence” seguido por “Heartwork”, faixa-título do disco de mesmo nome que mostrou lá atrás, em 1993, que os meninos de Liverpool não eram só podreira e morbidez. Um encerramento à altura para uma apresentação que comprovou o que já era esperado: com as circunstâncias certas e uma trégua do calor, o Carcass consegue mostrar todo o seu potencial sonoro.

Fabio Machado é músico e jornalista (não necessariamente nessa ordem). Baixista na Falsos Conejos, Mevoi, Thrills & the Chase e outros projetos. 
– Douglas Mosh é fotógrafo de shows e produtor. Conheça seu trabalho em instagram.com/dougmosh.prod