O racismo também se joga na televisão de Marco Mendonça
É um concurso televisivo, é sobre o colonialismo, o racismo e as reparações do período colonial. É o ‘Reparations Baby!’, a mais recente criação de Marco Mendonça, e estreia-se a 7 de Junho, em Sintra.


De um lado, a apresentadora; do outro, os três concorrentes. Ela de cartões na mão e em cima de uma plataforma, como se de um pedestal se tratasse. Eles em pé, atrás das suas respectivas mesas que, pintadas de cor-de-laranja, lembram o cenário de um game show norte-americano dos anos setenta. Atrás deles, está um ecrã. Vamos já na terceira ronda de Reparations Baby!, na qual os concorrentes competem entre si num aceso jogo da forca. À medida que os palpites (uns mais certeiros do que outros) são atirados pelo painel – ora “R” de reparação, ora “N” de negligência –, a apresentadora anuncia, efusivamente, as respostas, que vão desde afrofuturismo a Miriam Makeba. E o jogo continua – com uma montra de prémios simbólica que representa as reparações do período colonial, com uma entidade cuja voz vem do além, ou seja da régie, e com muitas questões em torno do racismo, da representatividade e diversidade, e também da falta de ambas.
Primeiro, Marco Mendonça pensou no formato. Queria criar um espectáculo que se apresentasse nos moldes de um programa de televisão, com direito a apresentadora, a um painel de concorrentes e até a bastidores de produção. Depois, veio uma vontade, aquela que tem vindo a permear o trabalho do actor e encenador desde que se estreou a solo com Blackface (2023) – a vontade de se debruçar sobre as suas inquietações, as inquietações de uma comunidade inteira. “Este espectáculo vem questionar muito isto – quem é que está no lugar de decisão e porque é que essas pessoas, que estão nos lugares de decisão, decidem trazer histórias que não são necessariamente as histórias delas, porque é que se sentem na propriedade de contá-las e não chamar as pessoas que têm conhecimento de causa para permitir que sejam elas mesmas a contar as sua próprias histórias?”, interroga o criador, em conversa com a Time Out, após um ensaio de Reparations Baby!, que se estreia a 7 de Junho, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, e se apresenta em Lisboa, no Teatro Variedades, entre 9 e 27 de Julho. Antes disso, passa pelo Theatro Gil Vicente (14 de Junho), em Barcelos, e pela Casa da Cultura (21 de Junho), em Ílhavo.
A peça passa-se na noite de estreia de um concurso de televisão em que os jogos e as perguntas são centradas em torno da trivia colonial ou da pop luso-africana e em que apenas podem participar concorrentes negros. Mas o que tinha tudo para ser uma emissão normal acaba por se tornar num jogo de privilégio perverso que, tomado por uma entidade misteriosa, pretende expor a absurdidade por detrás da criação do programa. “Também gira muito à volta da ideia de o que é efectivamente ser-se aliado de uma luta que não é verdadeiramente a nossa e quais são os limites dessa aliança, ou em que momento é que essa aliança deixa de ser uma coisa importante para quem não sofre certas coisas na pele”, continua.
Se era programa para passar na televisão portuguesa hoje em dia? Sim, acredita Marco Mendonça, mas preferencialmente pensado por pessoas negras. “Há muitos exemplos na ficção nacional e de filmes que, embora muito bem intencionados e que superficialmente toquem em temas importantes, seja o racismo ou o colonialismo, vão ter sempre uma perspectiva branca. Se o realizador for branco, se o argumentista for branco, nunca vamos escapar a isso, nunca vamos escapar a essa inevitabilidade de as histórias que se contam ficarem sempre incompletas”, acredita, sublinhando a importância de trazer perspectivas reais de pessoas racializadas para o processo de criação, de maneira a contar estas histórias.
“Isto não se trata de uma questão de substituição, de substituir pessoas brancas no poder por pessoas negras. É simplesmente que pessoas negras possam também ter acesso às entrevistas, aos castings, à porta que eventualmente possa dar acesso a estes lugares. Existem pessoas competentes para o fazer em todas as áreas, por isso o que falta é que deixe de haver essa hiper protecção, o chamado gatekeeping, que é uma coisa bastante real em qualquer área profissional, em Portugal e não só”, diz.
Assente na ironia e na sátira, Reparations Baby! tem como um dos seus objectivos pôr-nos a pensar nestas questões. É por isso que, ainda que nos possam provocar comichão ou fazer-nos encolher na cadeira, são introduzidas determinadas cenas ou elementos, como o hino “Angola é Nossa”, que soa durante a terceira ronda do programa, no momento em que a “diva”, tal qual Lenka no Preço Certo, entra em cena a empurrar um carrinho de prémios – esculturas africanas que pretendem representar as reparações do período colonial. Contudo, é também um espectáculo que serve para entreter, o que já vem a ser costume com as criações de Marco Mendonça. “O que me interessa fazer, acima de tudo, são espectáculos que possam entreter. Mais do que ensinar, mais do que informar, mais do que chocar até, entreter. E, enquanto se entretém, também se vai pensando numas coisas, também se vai reflectindo o mundo em que vivemos, o país em que vivemos.”
E especialmente agora, mais do que nunca, importa provocar, fazer pensar e denunciar os males que vivemos. “Aquilo que está a acontecer, neste momento, é uma discriminação em praça pública. Existem muitas manifestações de ódio a acontecer em espaços públicos e a tornarem-se mais aceitáveis – coisas ilegais, como considerações racistas. Estes crimes estão constantemente a ser cometidos em lugares públicos e é também nestes lugares que me sinto na obrigação, ou na responsabilidade, de contrariar esses crimes, de os denunciar e satirizar. Apesar de tudo, faço teatro e não faço política, portanto esta é a arma que tenho para questionar o que eu vejo acontecer à minha volta”, remata.
Centro Cultural Olga Cadaval (Sintra). 7 Jun. Sáb 21.30. Entrada gratuita (mediante reserva através do email bilheteira.ccoc@cm-sintra.pt. Limite de 2 bilhetes por pessoa, sujeito à lotação disponível) | Teatro Variedades (Lisboa). 9-27 Jul. Qua-Qui 20.00, Sex 21.00, Sáb 19.00, Dom 16.00. 12€-17€