Entrevista: Josyara e as experimentações, parcerias e sentimentos que movem “AVIA”
“A coisa só se revela quando lança”. É assim, dessa forma um tanto misteriosa, que Josyara resume o seu processo criativo. Tal expediente envolve não apenas seu canto...

entrevista de Fabio Machado
“A coisa só se revela quando lança”. É assim, dessa forma um tanto misteriosa, que Josyara resume o seu processo criativo. Tal expediente envolve não apenas seu canto e toque de violão únicos, mas também diversas etapas de pré-produção que incluem experimentações diversas com arranjos, timbres e efeitos para elaborar suas canções. Foi essa a jornada para trazer ao mundo “AVIA” (2025), seu mais recente disco lançado pela Deck com produção de Rafael Ramos.
Ao longo de nossa conversa, fica evidente que essa etapa experimental – às vezes mais organizada, mas com um quê de caos, na própria definição da cantora e compositora nascida em Juazeiro (BA) – é essencial para que consiga elaborar os elementos que integram o álbum em todos os seus aspectos. Das levadas de violão que a acompanham desde “Mansa Fúria”, disco lançado em 2018, aos contornos melódicos de sua voz passando pelo colorido dos sopros e samples que são destaque em “AVIA”, passando pela direção artística e colaboração no design gráfico das capas e linguagem audiovisual dos clipes e visualizers que acompanham as músicas, em parceria com a diretora Juh Almeida.
As colaborações também são uma constante neste trabalho, trazendo frutos de encontros musicais estabelecidos nos últimos cinco anos com figuras diversas da música brasileira atual, como Pitty (em “Ensacado”, tema originalmente gravado por Cátia de França no clássico “20 Palavras ao Redor do Sol”, de 1979), Liniker (nas letras de “Peixe Coração”), Juliana Linhares (em “Prova de amor”), Iara Rennó (co-autora de “Seiva”) e Chico Chico (no dueto de “Oásis (a duna e o vento)” que encerra o álbum. Há ainda uma outra regravação na faixa de abertura, “Eu gosto assim”, de Anelis Assumpção – presença conhecida de outros tempos, vide a parceria registrada no disco “Sal” (2022).
O resultado desses diferentes caminhos artísticos que se atravessam é uma jornada que reflete a própria Josyara, mesmo quando canta palavras e melodias de outros artistas; uma questão que ela inclusive acha natural, já que seus lados intérprete e compositora estão “de mãos dadas”. Tudo sai naturalmente com sua assinatura e cadência, seja na voz ou nas seis cordas do acústico. E essa identidade é essencial para contar a narrativa de “AVIA” (uma expressão comum no Nordeste, que significa acelerar, correr ou adiantar). Mesmo em momentos mais suaves e introspectivos, a pressa indicada no título se faz presente pela necessidade de superar ciclos, ressignificar histórias e amores. Em conversa com Scream & Yell, a compositora baiana detalha melhor os conceitos que envolveram a criação do álbum e aborda seus processos criativos.
Uma definição possível sobre o nome “AVIA” seria deixar correr, concluir. Palavras que trazem um sentimento de urgência, em um primeiro momento. O que trouxe essa urgência no contexto da criação do álbum?
Quando comecei [a trabalhar no “AVIA”], as músicas foram dando o tema do disco. E são canções que pontuam muitos ciclos desse personagem, desse eu lírico do álbum. É um ciclo do se encontrar, de se reconhecer, de encontrar outra pessoa para compartilhar, de um desencanto, um término, ou de se reapaixonar, ou da solitude, ali, num momento que é bem introspectivo (do disco). Então, é como se essa expressão, esse “chamado”, digamos assim, fosse para esse personagem poder passar pelos ciclos, ressignificá-los, etc. É um lado mais poético, mais livre.
Então, o termo é mais para chamar a atenção para esse sentimento de amor que permeia o disco?
Não só chamar a atenção, mas é quase que… como literalmente a expressão diz, que é “adiante”, é quase que um impulso mesmo de ressignificar as sensações e sentimentos, de superação. É como se fosse um: vai, levante dessa cama aí, e vá viver sua vida, vá se apaixonar de novo, vá olhar para si. É um estímulo para essa história não ficar aí parada, para correr.
Agora que você falou, me veio uma lembrança boa aqui: a minha avó era baiana, e mesmo estando no litoral de São Paulo há bastante tempo, lembro que ela ainda falava de vez em quando “Avia, menino!” E tinha realmente esse contexto do chamamento, da pressa. Puxando um pouco para esse lado, tem alguma coisa da sua infância, da sua criação, que você trouxe para esse álbum?
Eu trouxe na imagem. O clipe de “Corredeiras” traz a memória dessa minha conexão com o violão, o primeiro contato que eu brinquei e destruí o violão, então na conversa com Juh Almeida [diretora], que fez direção artística e roteiro, a gente quis mostrar todo esse meu caminho na música, também ao lado dessa poética da música “Corredeiras”. E aparece ali aquela imagem daquela criança com o violão, essas memórias do passado que a canção traz muito: “Toda água deve correr / as velhas estradas que eu percorri / E tudo tá ali / tudo tá comigo / Mas tudo passou também”. Então, fala sim de uma certa maneira.
Falando um pouco sobre o violão, percebo que ele é um elemento central da sua música, isso desde o começo da sua carreira. Mas nesse disco, não sei se pela produção ou pelos arranjos, ele parece estar mais presente, dá para notar mais detalhes do seu toque e das coisas que você faz no instrumento. Qual foi a importância de dar o destaque para o violão nesse disco? Você sente que houve alguma evolução nesse aspecto, em relação a trabalhos anteriores?
Eu acho que tem um lugar de amadurecer mesmo a identidade do meu trabalho, de reconhecer como o violão é importante e como me representa como artista, para além de estar ali sozinha com ele, criando, enfim, que já tem uma coisa muito natural. Mas acho que (o objetivo) era firmar essa identidade, e também trazer ele como o condutor desses arranjos. Tem faixas que tem três violões, é algo orquestrado também, diferente do “Mansa Fúria” (disco de 2018) que é apenas um violão sem outro instrumento de corda. Somente um arranjo de violão (no disco) inteiro ali.
No “ÀdeusdarÁ” (disco de 2022), eu faço um laboratório disso: eu estava começando a produzir, começando a fazer bases, então é um disco desses laboratórios e experimentos. Já nesse (“AVIA”), eu me vejo um pouco mais madura nesse lugar de como organizar as ideias e arranjos. Eu gosto de experimentar, sempre vou experimentar nos meus álbuns; mas para além desses experimentos, é de fato mostrar como ele (o violão) é quem rege a minha composição, não só a canção sozinha, mas também ideias de cordas, sopros que eu compus. Isso partiu muito do violão, muito da forma que eu toquei ali um riff que eu fiz no instrumento e aí passou para o sopro, entendeu? Então, às vezes eu nem gravei aquele arranjo no violão em si, mas ele que compôs, ele que fez acontecer na minha ideia.
O arranjo vai nascendo no violão, e a partir daí você vai expandindo?
Exatamente. Ele vai nascendo, eu vou compondo as linhas melódicas dos instrumentos que eu quero que estejam na composição, e aí eu vou substituindo por MIDI ou por samples, por coisas que eu acho que possam soar ali para ter a demo. Ou até serem coisas “valendo”, porque tem elementos da pré-produção que eu fiz em casa que se mantiveram ali, como alguns violões com efeito, que eu editei e brinquei com a sonoridade. Então algumas coisas (desse processo criativo) ficaram.
No decorrer do “AVIA”, eu vejo que esses arranjos realmente ficaram muito ricos. Não só a parte rítmica e harmônica do violão, mas também tem percussões, algumas partes que soam como um violão de 12 cordas, nem sei se foi exatamente isso ou outro instrumento, mas lembrou um pouco a sonoridade, tem os sopros… Para pensar nesses arranjos, qual foi o processo? Você tinha alguma referência musical específica ou era algo que você já vinha gestando há algum tempo?
Tudo ali veio de experimentos comigo mesma. Eu gosto muito de estudar, de praticar “basezinhas”, volta e meia eu posto no meu Instagram. Então, vem um tanto disso. A música “Festa Nada a Ver”, se você fuçar no meu Instagram, tem lá um trechinho eu experimentando os arranjos de violão. É um mix de muita coisa: são os meus processos comigo, de estudo, de querer fazer alguma coisa criativamente, e tem o lugar das referências, sem dúvida. Eu tava ouvindo muito Djavan, Tim Maia também, entre outras coisas gringas, Khruangbin, Adi Oasis, Kadhja Bonet que tem uns arranjos lindos de cordas. Umas coisas de fora que não vou lembrar todos os nomes. E entre as minhas referências centrais de sempre, que volta e meia eu recorro, a Chico César, escuto ali os (discos) ao vivo para ver: “Como é que é mesmo? Como é que pode ser?” Então, meus estudos também voltam a essas referências de base. [Repete a frase] É um mix de muita coisa. E aí o meu fazer, sei lá, eu sento e tenho a ideia de uma música, tá pronta a música, quero produzir, aí eu vou mexendo, vou vendo, faço uma levada de bateria com o riff de violão que acabei de criar. Combinou ou não combinou? Troco, eu vou fazendo umas dez versões (da mesma ideia), às vezes.
Isso ainda na pré-produção?
Na pré-produção. Eu vou experimentando, adoro fazer isso, fico o dia inteiro numa música só. Tiro, boto, corto… Eu gosto muito de fazer isso, é uma diversão para mim. Também descobri essa autonomia, de poder me expressar e mostrar os caminhos próximos do que eu quero, de como pode soar. Então isso me ajudou muito a trazer um conceito mais coeso, mais amarrado. É por aí. Não existe uma regra, mas no “AVIA” foi um pouco dessa maneira. Foi uma inspiração que me deu, sentei e comecei não só a compor, mas também ver gravações de músicas mais antigas, fui terminando coisas, terminando parcerias mais recentes, como as de Pitty e de Juliana Linhares, que foi mais durante o processo de produção do álbum. É tudo meio misturado, a coisa só se revela quando lança. Aí lançou, pronto. Tem coisas um pouco mais organizadas, mas nem tudo é muito organizado, não. Tem um quê de caos também assim no meio. Vai acontecendo.
Falando sobre as parcerias, então a ideia de tocar com a Pitty e as outras parcerias foi indo mais do meio para o fim da produção de “AVIA”?
Não necessariamente, por exemplo: a de Pitty eu compus no final de 2022, no início de 2023 eu tinha a música. Eu já tinha gravado a pré, já tinha levantado algumas coisas… É nesse sentido. Com Juliana (Linhares) também, eu terminei a música em 2023. Ela mandou um texto e foi isso. Aí, “Seiva” com Iara Rennó, foi um pouco mais antiga, a gente fez em 2021, na pandemia, eu começando a produzir, a levantar bases, arranjos. Com a Liniker (co-autoria em “Peixe Coração”) é mais antiga, em 2019, fizemos a música em uma tarde despretensiosa e ficou lá guardada no celular. E nessa pesquisa de repertório, de ver o que que eu posso gravar, essa música me voltou. E foi nesse processo. As músicas mais recentes desse período foram “Corredeiras”, “De Samba em Samba”. Que mais? “Oásis” é uma música que fiz em 2020… são músicas do ciclo de cinco anos, vamos dizer assim, que quando tive a ideia de fazer um disco, comecei a recorrer a esses registros antigos em conjunto com ideias novas, como “Festa Nada a Ver”, que é super recente, foi no processo do disco.
Você abre “AVIA” com uma música que também é de outra pessoa, da Anelis Assumpção. É curioso porque, num disco que tem essa pegada mais confessional nas letras, você escolhe pegar uma canção que não seja sua para abrir o álbum. Teve alguma decisão por trás disso?
Olha, não teve… a decisão foi artística, somente. Claro que eu pensei em milhares de ordens antes de chegar na oficial, pensei em vários jeitos. O disco surgiu na demo começando com “Corredeiras” e terminava com “Eu gosto assim”, ou estava ali mais para o lado B, digamos. E aí foi nesses testes que eu fechei a matemática, e falei: Poxa, acho que vai ficar muito mais interessante começar com “Eu gosto assim” porque apresenta esse personagem, está falando dele ou dela: “eu gosto assim, pra me sacar não tem segredo”, tá falando das coisas que gosta e que não gosta… Começa ali no voz e violão também, então traz firme essa identidade que as pessoas me vêm com o instrumento. E depois fui entendendo que seria legal se apresentar para depois esse personagem viver as histórias do álbum.
É legal porque ficou uma música totalmente com a sua cara. Se a pessoa não vê a ficha técnica, vai achar que é uma canção da Josyara.
Pois é, eu gosto muito de ser intérprete. Tenho um disco cantando Timbalada (“Mandinga Multiplicação” de 2024), sempre cantei releituras e tive isso na minha vida, e acho que a minha faceta compositora anda de mãos dadas, no maior amor, com a minha intérprete. E a parte da compositora acaba “contaminando” de certa maneira essa intérprete, porque é isso que você falou: eu traduzi no meu universo essa canção. Acaba que isso vai acontecendo, e certamente vai acontecer em outros trabalhos.
“AVIA” tem um visualizer para cada música (além do clipe já lançado para “Corredeiras”), tudo com uma linguagem muito específica, muito próprio, que complementam as músicas. Como foi o processo criativo para pensar esses elementos visuais? Você colaborou com outras pessoas?
Essa parte da imagem ficou por conta de Juh Almeida, ela produziu o clipe. E a ideia era justamente que o vídeo de “Corredeiras” sintetizasse a imagem do disco. Que dali a gente tirasse a foto de capa, os visualizers, que cada trechinho contasse o que cada música representa. Parece um clipe para cada música, mas é um trecho do vídeo oficial (de “Corredeiras”). Então a gente não produziu um material a mais, mas conseguiu organizar, dividir o conteúdo de uma forma que ele conseguisse dialogar entre si. Foi muito conversando com Juh mesmo, tem muito a parte criativa dela e da equipe na direção e no roteiro. E claro que eu tava ali, aprovando e gostando, dando caminhos também, contando as minhas histórias, meus desejos de cor, de textura que eu queria transmitir. E foi isso, contei tudo que eu queria e Juh conseguiu organizar essas ideias e fazer acontecer. A capa (do disco) eu coloquei mais a mão na massa, eu diagramei, não apliquei o design, mas fiz o desenho do nome, a minha assinatura, rasurei ali a minha foto. Eu sempre faço as minhas capas…
Fazer isso é uma etapa importante para você, então.
É, eu acabo me metendo e quando vou ver já estou fazendo. É um impulso, assim (risos). Um negócio que é maior do que eu. Em “Mansa Fúria”, Natália Arjones foi a designer, mas eu apliquei o desenho, eu queria que tivesse o dourado, então fui dirigindo toda essa parte artística. “ÀdeusdarÁ” é minha assinatura mesmo, minha diagramação, a tipografia também, claro que teve um designer que aplicou tudo isso (Pedro Hansen). Mas essas coisas eu acabo me metendo, quando vejo já estou fazendo. E acho que de uma certa maneira vai também, a longo prazo, eu consigo enxergar que vai trazendo essa identidade, vai firmando um caminho, uma trajetória artística. E eu acho interessante isso. Eu gosto de conduzir as coisas, de opinar, de trocar muito, então é muito importante para mim ter parcerias que tenham uma abertura para contribuir e me ouvir também. Aí, o trabalho acontece com uma fluidez melhor.
Para finalizar, quais os planos agora que o disco foi lançado? Coisas que você já está pensando em fazer? Fique à vontade para usar esse espaço.
Acabei de lançar um single em parceria com o Braza (“Raio de Sol”). Da minha parte, a ideia é circular bastante, fazer bastante shows com o “AVIA”, e aí ano que vem, mais para a frente, vou entender as novas ideias que estiverem pintando.
– Fabio Machado é músico e jornalista (não necessariamente nessa ordem). Baixista na Falsos Conejos, Mevoi, Thrills & the Chase e outros projetos.