Política, margarina e um toque de semiologia

A Casa Encantada (1945): desenhado por Dalí, filmado por Hitchcock Como pensar a televisão a partir do seu interior? Em boa verdade, a tarefa tornou-se quase impossível — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 maio).Tempos houve em que, para algumas pessoas, era de bom tom tratar os críticos de cinema como uns rapazes esforçados e arrogantes que se distinguiam por uma ridícula obsessão: tinham a mania de analisar os filmes... Podia até sugerir-se que a complexidade narrativa de um filme de Hitchcock se aproximava da densidade de uma pintura de Dalí (trabalharam juntos, já agora), mas isso era irrelevante — “analisar” os filmes, que disparate...Confesso que tenho saudades dessas atribulações das décadas fundadoras da nossa democracia, ainda que o fenómeno já existisse antes de 1974, tendo passado, incólume, de um tempo para outro. Era, pelo menos, possível compreender e, de algum modo, valorizar as diferenças com que vivíamos. Agora, entre política e futebol, a “análise” passou a ser um vírus televisivo, para mais ancorado num tique de linguagem que se tornou epidémico: o “analista” comum começa quase sempre com as palavras “eu acho que...” — tal expressão é aplicada como prova de uma verdade inequivocamente estabelecida apenas porque ele ou ela “acha que...”Vem isto a propósito de um fenómeno paralelo cuja perversidade de linguagem me interessa e, perversamente também, me seduz. Assim, em alguns canais de televisão, têm surgido participantes em debates políticos que vão dando conta da sua indignação face ao automatismo com que qualquer evento em torno do partido Chega é rapidamente transformado em sobressalto “informativo”, mesmo quando (por mim, diria mesmo: sobretudo quando) não há nada de novo ou relevante para ser noticiado.Roland BarthesAbre-se, deste modo, uma saudável via de reflexão que, infelizmente, ninguém arrisca prosseguir. A saber: até que ponto a ascensão social de algumas forças políticas (não apenas em Portugal, como é óbvio) tem sido favorecida pela ligeireza com que determinadas linguagens televisivas excluem qualquer hipótese de pensamento, apenas celebrando o que possa conter alguma promessa de agitação ou conflito? Não há muitos anos, numa gritaria à porta de um estádio de futebol, e na expectativa de alguma confusão, um jovem repórter, aparentemente desiludido por não ter à sua frente uma altercação mais extremada, formulou mesmo a frase chave desta ideologia mediática: “Ainda não há violência...” A pergunta que ficou é esta: quem ensinou os jovens como ele a reportar aquilo que “ainda” não aconteceu?Agora, pelo menos, há quem comente política no interior da televisão chamando a atenção para a grosseria cognitiva que a televisão, precisamente, pode assumir e propalar. Sinto-me próximo das suas preocupações, embora perguntando se têm consciência da ambiguidade do seu gesto. Entenda-se: não se trata de duvidar da sua sinceridade e isenção, do mesmo modo que ninguém está a sugerir que as televisões são cavalos de Tróia deste ou daquele partido. As questões em jogo são menos lineares e francamente mais incómodas. Acontece que esta denúncia televisiva da mediocridade (também) televisiva pode favorecer o perturbante fenómeno semiológico que Roland Barthes, nas suas Mitologias, chamou “vacina da verdade” (foi em 1957!!!).“Um pouco de um mal reconhecido dispensa o conhecimento de muito mal escondido”, escrevia Barthes (a tradução é minha) a propósito da publicidade da margarina Astra. Eis a vacina da verdade. Primeiro, a margarina é apontada como um verdadeiro escândalo gastronómico: “Uma mousse feita com margarina? Impensável!”. Depois, emerge uma espécie de compaixão religiosa: afinal, “a margarina é um alimento delicioso, agradável, digestivo, económico, útil em qualquer circunstância.” Resume Barthes: ao aceitar a banalidade da margarina, normalizando o seu consumo, “a consciência suaviza-se".A questão de fundo, creio, decorre de um facto que todos, analistas ou políticos (por vezes, analistas e políticos), continuam a recalcar. A dinâmica social da política — e, em boa verdade, toda a dinâmica social — passou a ser determinada, filtrada, organizada, decomposta e recomposta por linguagens de raiz televisiva. Eis um bom tema para analisar.

Jun 8, 2025 - 12:25
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Política, margarina e um toque de semiologia
A Casa Encantada (1945): desenhado por Dalí, filmado por Hitchcock

Como pensar a televisão a partir do seu interior? Em boa verdade, a tarefa tornou-se quase impossível — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 maio).

Tempos houve em que, para algumas pessoas, era de bom tom tratar os críticos de cinema como uns rapazes esforçados e arrogantes que se distinguiam por uma ridícula obsessão: tinham a mania de analisar os filmes... Podia até sugerir-se que a complexidade narrativa de um filme de Hitchcock se aproximava da densidade de uma pintura de Dalí (trabalharam juntos, já agora), mas isso era irrelevante — “analisar” os filmes, que disparate...
Confesso que tenho saudades dessas atribulações das décadas fundadoras da nossa democracia, ainda que o fenómeno já existisse antes de 1974, tendo passado, incólume, de um tempo para outro. Era, pelo menos, possível compreender e, de algum modo, valorizar as diferenças com que vivíamos. Agora, entre política e futebol, a “análise” passou a ser um vírus televisivo, para mais ancorado num tique de linguagem que se tornou epidémico: o “analista” comum começa quase sempre com as palavras “eu acho que...” — tal expressão é aplicada como prova de uma verdade inequivocamente estabelecida apenas porque ele ou ela “acha que...”
Vem isto a propósito de um fenómeno paralelo cuja perversidade de linguagem me interessa e, perversamente também, me seduz. Assim, em alguns canais de televisão, têm surgido participantes em debates políticos que vão dando conta da sua indignação face ao automatismo com que qualquer evento em torno do partido Chega é rapidamente transformado em sobressalto “informativo”, mesmo quando (por mim, diria mesmo: sobretudo quando) não há nada de novo ou relevante para ser noticiado.
Roland Barthes
Abre-se, deste modo, uma saudável via de reflexão que, infelizmente, ninguém arrisca prosseguir. A saber: até que ponto a ascensão social de algumas forças políticas (não apenas em Portugal, como é óbvio) tem sido favorecida pela ligeireza com que determinadas linguagens televisivas excluem qualquer hipótese de pensamento, apenas celebrando o que possa conter alguma promessa de agitação ou conflito? Não há muitos anos, numa gritaria à porta de um estádio de futebol, e na expectativa de alguma confusão, um jovem repórter, aparentemente desiludido por não ter à sua frente uma altercação mais extremada, formulou mesmo a frase chave desta ideologia mediática: “Ainda não há violência...” A pergunta que ficou é esta: quem ensinou os jovens como ele a reportar aquilo que “ainda” não aconteceu?
Agora, pelo menos, há quem comente política no interior da televisão chamando a atenção para a grosseria cognitiva que a televisão, precisamente, pode assumir e propalar. Sinto-me próximo das suas preocupações, embora perguntando se têm consciência da ambiguidade do seu gesto. Entenda-se: não se trata de duvidar da sua sinceridade e isenção, do mesmo modo que ninguém está a sugerir que as televisões são cavalos de Tróia deste ou daquele partido. As questões em jogo são menos lineares e francamente mais incómodas. Acontece que esta denúncia televisiva da mediocridade (também) televisiva pode favorecer o perturbante fenómeno semiológico que Roland Barthes, nas suas Mitologias, chamou “vacina da verdade” (foi em 1957!!!).
“Um pouco de um mal reconhecido dispensa o conhecimento de muito mal escondido”, escrevia Barthes (a tradução é minha) a propósito da publicidade da margarina Astra. Eis a vacina da verdade. Primeiro, a margarina é apontada como um verdadeiro escândalo gastronómico: “Uma mousse feita com margarina? Impensável!”. Depois, emerge uma espécie de compaixão religiosa: afinal, “a margarina é um alimento delicioso, agradável, digestivo, económico, útil em qualquer circunstância.” Resume Barthes: ao aceitar a banalidade da margarina, normalizando o seu consumo, “a consciência suaviza-se".
A questão de fundo, creio, decorre de um facto que todos, analistas ou políticos (por vezes, analistas e políticos), continuam a recalcar. A dinâmica social da política — e, em boa verdade, toda a dinâmica social — passou a ser determinada, filtrada, organizada, decomposta e recomposta por linguagens de raiz televisiva. Eis um bom tema para analisar.